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sábado, 2 de novembro de 2013

Memórias do amanhã - Wray Herbert


Lembro-me de quando me aposentei como se fosse hoje. Depois recordo que ainda trabalho, mas menos que quando mais jovem. Minha mulher e eu ainda moramos na região central da cidade, andamos bastante de bicicleta e assim ficamos em forma. Na volta para casa, passamos em nosso café predileto, onde lemos os jornais matutinos e, às vezes, encontramos amigos.

Na verdade, esse é apenas um dos cenários que devo ter projetado em algum ponto no passado, já que não estou nem perto da aposentadoria. Há várias outras possibilidades, mas o mais marcante é que todos os meus futuros são repletos de paz e alegria. Não incluem problemas financeiros ou de saúde, tampouco são monótonos - nem para mim nem para nenhum conhecido.

Um novo estudo publicado na edição de janeiro de 2012 da Psychological Science pode explicar por que somos todos tão otimistas sobre os tempos que (acreditamos que) estão por vir. Os autores afirmam que as pessoas tendem a se lembrar melhor das projeções mais felizes que das pessimistas.

Muitos pesquisadores se interessam por "futuros lembrados". O conceito parece até contraditório, pois tendemos a pensar na memória em relação ao passado: lembranças de pessoas e situações vividas, ou mesmo do que pensamos. O fato é que todos nós imaginamos o futuro e de tempos em tempos nos recordamos dessas projeções fantasiosas. Pesquisas recentes, mostram que rememorar algo ou pensar sobre o futuro ativa exatamente as mesmas áreas cerebrais. Alguns cientistas acreditam que essas "recordações" têm função adaptativa, pois nos permitem planejar e nos preparar melhor para o que pode estar por vir. Ou seja, se pudermos nos lembrar das ações e reações sobre as quais refletimos no passado, nosso comportamento futuro será mais eficiente.

Mesmo assim, muito pouco era conhecido até recentemente sobre como essas simulações funcionam. Todas as futuras lembranças seriam benéficas? De quais cenários nos lembramos melhor? As previsões da maioria das pessoas são de fato "cor-de-rosa"? Ou descartamos as simulações menos otimistas e as esquecemos? É muito difícil encontrar respostas para essas perguntas em um laboratório. Ou pelo menos era até recentemente, quando uma equipe de psicólogos experimentais, liderados por Karl K. Szpunar, pesquisador da Universidade Harvard, criou um método inédito para produzir simulações futuras de forma bastante autêntica, usadas para estudar as características e a permanência desses fenômenos mentais.

Szpunar e seus colegas começaram registrando detalhes biográficos reais lembrados por universitários. Essas informações incluíam pessoas que os participantes do estudo conheceram, locais em que estiveram, objetos e situações comuns de sua vida. Alguém poderia, por exemplo, contar aos pesquisadores sobre tomar uma cerveja com uma amiga no bairro onde mora, emprestar um livro ao primo ou comprar um aparelho de televisão durante a liquidação anual do shopping. Cada um dos 48 voluntários contribuiu com pelo menos uma centena dessas memórias "triviais".

Uma semana depois, os pesquisadores voltaram ao material básico - revendo todas as pessoas, lugares, situações e objetos de passados recentes e remotos citados pelos voluntários - e misturaram tudo. Apresentaram aos estudantes combinações aleatórias de suas lembranças e os instruíram a pensar em cenários imaginários futuros. Tornando o exemplo anterior, o conjunto aleatório poderia ter sido o primo, o bar, o livro e a televisão comprada no shopping. Em alguns casos pediram que os participantes imaginassem um futuro positivo, um negativo e outro neutro. Seria possível, por exemplo, a pessoa imaginar uma cena positiva na qual estivesse se divertindo com o primo no bar; um cenário negativo em que estivesse discutindo com o primo por causa de um livro, com a TV ligada ao fundo; e uma simulação neutra, na qual o voluntário estivesse comprando um livro no shopping.

Depois, os psicólogos testaram as lembranças dos voluntários sobre esses cenários futuros, fornecendo-lhes dois dos três detalhes - digamos, o bar e o primo , e pediram que completassem o detalhe que faltava - no caso, a televisão -, para recriar a cena simulada. Foram aplicados testes em alguns dos estudantes dez minutos após eles terem imaginado futuras situações e avaliados outros participantes no dia seguinte. A proposta era descobrir se o conteúdo emocional dos futuros imaginados - positivo, negativo ou neutro - influía para que fossem mais ou menos fixados.

Os resultados foram intrigantes: após dez minutos, os voluntários conseguiam recordar todas as simulações igualmente bem. Um dia depois, porém, detalhes de cenários negativos eram muito mais difíceis de ser resgatados que os dos positivos ou neutros.

Essa descoberta é consistente com o que se sabe a respeito de lembranças negativas - tendem a desaparecer mais rapidamente que as positivas - reforçando a idei de que, de fato, prevalece a idealização do passado. Szpunar levantou a hipótese de que a emoção associada a uma simulação do futuro é a "liga" que conecta detalhes do cenário na memória. À medida que a emoção negativa se dissipa, o mesmo acontece com a integridade do futuro projetado.

Assim, as versões negativas do que está por vir desaparecem com o tempo, enquanto as positivas permanecem - deixando, no balanço, basicamente uma visão predominantemente rósea do amanhã. Esse processo pode acarretar ilusões, mas parece sinal de saúde psíquica. É importante lembrar, por exemplo, que pessoas que sofrem de depressão e outros transtornos de humor tendem não apenas a ruminar os acontecimentos negativos passados, mas também a antever cenários tristes. Adultos psicologicamente saudáveis costumam ser otimistas sobre o que o futuro lhes reserva. Talvez seja um processo adaptativo imaginar o pior, de vez em quando, para em seguida nos esforçarmos para driblar o que pode ser evitado - para, posteriormente, deixarmos fantasmas que não podem ser combatidos desaparecer aos poucos.




(texto publicado na revista Mente Cérebro nº 233)





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