Pages

sábado, 9 de agosto de 2014

Inteligência animal - Giovana Girardi


Cientistas comprovam o que o homem já sabia sobre o seu melhor amigo

Quem tem cachorro em casa e vive impressionado com as habilidades de seu animal já se acostumou a dizer: "é tão inteligente que só falta falar". Mas o que parece só papo de dono empolgado está ganhando embasamento científico. Em 2002, pelo menos três pesquisas mostraram que os cães sabem contar, são capazes de reconhecer os sinais humanos - talvez por isso tenham se tornado os melhores amigos do homem - e parece que são capazes até mesmo de "falar". Na Universidade de São Paulo, a vira-latinha Sofia, de um ano, está aprendendo a manifestar fome, sede ou vontade de passear por meio de painel com símbolos arbitrários. Até há pouco tempo, esse tipo de teste era feito somente em animais considerados superinteligentes, como os chimpanzés e os golfinhos.

O experimento com Sofia testa até que ponto os relatos contados pelos proprietários de cachorros são verdadeiros e o quanto os cães realmente têm de inteligência, que poderia ser exemplificada como a capacidade de juntar ideias, resolver problemas e até de se comunicar com o homem. O estudo tem duas etapas: ensiná-la a "falar" e verificar suas habilidades em compreender a linguagem humana.

Sofia aprendeu como usar um painel com sinais arbitrários que representam as palavras "comida", "água", "xixi", "casinha", "carinho", "passear" e "brinquedo". O zootecnista Alexandre Rossi, que está fazendo sua dissertação de mestrado em psicologia a partir desse trabalho, explica que é possível dizer que um animal é inteligente em termos de comunicação se ele tiver flexibilidade. E parece que a cadelinha está se saindo muito bem.

Ele conta que toda vez que Sofia quer alguma dessas coisas, chama a sua atenção ou a de algum dos outros pesquisadores e aperta a tecla correspondente. "Se a gente não faz o que ela pede, vai lá e aperta de novo", diz se divertindo. E quando aparece um símbolo novo no painel, Sofia aperta e fica olhando para ver o que os pesquisadores fazem.

Esse processo funciona com um mecanismo de curiosidade, experimentação e aprendizagem. A princípio o animal é estimulado a mexer nas teclas. Quando aperta uma específica os pesquisadores dizem "ah, você quer comida" e alimentam o animal. Quando aperta outra, dizem "ah, agora você quer passear", e saem com a cachorrinha. "É quase como se Sofia treinasse a gente. Ela vai descobrindo que cada tecla muda o nosso comportamento e passa a controlar isso através do painel", afirma.

Segundo ele, essa ideia é baseada no aprendizado que os cães recebem em casa e que acontece sem que os donos nem percebam que estão ensinando. Ele cita como exemplo o comportamento que quase todo cachorro tem de fazer baderna com a tigelinha de comida quando está com fome. Só que o aprendizado disso surge quase sem querer. Quando ainda é um filhotinho, o cão pode um dia passar a língua na sua tigela porque encontrou uma migalha qualquer e o dono já faz uma interpretação. "O cão não quer comunicar nada, mas o dono vê aquilo, acha que ele está com fome e o alimenta. Isso vira um sinal e quanto mais as pessoas acreditam que o cão é capaz de se comunicar, mais abrem essa possibilidade", explica.

A partir daí entra em cena a inteligência do animal. O cão dá um pulo de compreensão e começa a generalizar aquele comportamento para conseguir outras coisas. Se dá certo com a tigela de comida, também pode dar com a de água. Dali a pouco ele já pega a coleira quando quer passear.

Antes de começar a pesquisa, o grupo colheu mais de 4 mil relatos de donos sobre seus cães. "Ficamos pensando se tudo aquilo era possível e com o experimento percebemos que grande parte dos proprietários diz a verdade."

Um outro estudo, publicado em novembro na revista "Science", reforça ainda mais a imagem dos donos de que seus cães entendem o que está acontecendo em volta deles, como quando estão se preparando para sair de casa e o bichinho já começa a chorar.

Uma equipe coordenada pelo pesquisador Brian Hare, da Universidade Harvard, nos EUA, demonstrou que os cães são os animais que melhor compreendem os sinais humanos. Nem mesmo chimpanzés - os animais mais próximos do ser humano na evolução - ou lobos domesticados tiveram o mesmo desempenho.

O teste consistia em colocar os animais para descobrir, entre dois potes, qual deles tinha comida escondida. Tomou-se o cuidado de impedir que os bichos pudessem farejar o alimento. A única possibilidade de achar a comida era seguir as dicas dos pesquisadores.

No primeiro teste os pesquisadores colocaram um pedacinho de madeira em cima do pote certo. Na disputa entre 11 cães e 11 chimpanzés, os cachorros ganharam de lavada. Nove acertaram a dica, contra apenas dois acertos dos macacos. Os cães apresentaram o mesmo desempenho também contra os lobos, qualquer que fosse a dica - olhar, apontar ou dar um tapinha.

"Estes resultados sugerem que durante o processo de domesticação, cachorros foram selecionados por um conjunto de habilidades cognitivas que os capacitaram a se comunicar com os humanos", afirma a equipe no estudo publicado na "Science". Hare afirmou a Galileu que esta aptidão pode ser uma boa explicação para os cães terem se tornado os melhores amigos do homem.

A pergunta que fica é se, assim como entendem os sinais, os cachorros também podem entender a linguagem humana. Hare disse que não sabe ainda, mas talvez a resposta possa sair do estudo que está sendo feito com Sofia. A segunda etapa do trabalho busca avaliar exatamente isso.

Busca a bola

Todo treinador sabe que alguma coisa o cachorro entende, já que é capaz de seguir comandos simples como "deita", "busca bola" etc. Segundo Alexandre Rossi, a ideia agora é descobrir como isso ocorre. "Será que ele entende 'busca' como uma ação e 'bola' como um objeto, ou será que para o cão é uma palavra só?"

Para isso, Sofia está passando por uma série de testes. A princípio foram ensinadas várias palavras, como "palito" e "bola" e alguns comandos, como buscar e apontar. Depois ela recebeu a ordem de buscar a bola várias vezes. Quando ela ouviu pela primeira vez "busca palito", foi capaz de cumprir a tarefa. "Percebemos que ela entendeu a frase de um modo semelhante à nossa e foi capaz de compreender comandos múltiplos. Juntou duas informações e executou o comando em seguida."

A próxima etapa agora é dificultar ainda mais o processo. O coordenador da pesquisa e professor de psicologia experimental da USP César Ades quer acrescentar uma terceira variável ao exercício: um adjetivo. Em vez só de buscar uma bola, Sofia terá de decidir entre a grande e a pequena. "Vamos juntar uma ação, um objeto e uma qualidade. Se ela for capaz de reagir com uma boa taxa de acerto aí sim eu poderia falar em um estágio avançado de inteligência", declara.

Essa aliás é uma grande discussão quando se fala das habilidades de um animal: diferenciar o que é inteligência do que é aprendizagem e condicionamento. Ades afirma que existe inteligência ou cognição, como preferem dizer os pesquisadores, quando o animal é capaz de juntar ideias. "Isso extrapola um condicionamento simples feito com base em estímulo e resposta. O nosso desafio é mostrar que o animal é capaz de executar operações cognitivas complexas. Tentamos complicar a vida do bicho e ver até onde ele é capaz de resolver."

Outra definição para cognição é a capacidade do animal de resolver um problema sem experiência prévia. É também sua capacidade de ser flexível - agir da melhor forma possível em um contexto novo.

Pensando nisso, o inglês Robert Young, professor de comportamento animal da PUC-Minas, de Belo Horizonte, resolveu testar cães diante de uma situação inédita para verificar qual seria a reação. Ele pôs os bichos para observar um prato com biscoitos e ficou alterando a quantidade para ver se eles conseguiam notar a diferença, ou seja, contar.

Primeiro ele deixou que os animais vissem o prato com um biscoito. Young então tampou o local e deu a entender que estava colocando mais um biscoito no prato. Em seguida destampou a área, deixando o animal olhar os dois biscoitos. No segundo teste, ele mostrou novamente o biscoito que estaria sendo acrescentado, mas não o pôs no prato. Ao ver só um biscoito, o cão estranhou e ficava mais tempo observando a situação inesperada.

No terceiro teste, o pesquisador adotou o mesmo procedimento, mas dessa vez, ele colocou três biscoitos para o cão observar. Percebeu-se então que ele ficava ainda mais surpreso, olhando o prato por mais tempo. Esse teste é o mesmo usado em bebês de cinco meses para avaliar a sua capacidade matemática. 

O pesquisador afirma que a capacidade de contar vem dos lobos, de quem os cães descendem. "Como caçam em grandes bandos e dependem de cooperação, é importante saber quantos são amigos e quantos são inimigos", diz.

Cérebro plástico

Young explica ainda que o cérebro dos cachorros é muito parecido com o dos filhotes de lobos. É mais plástico, flexível, fazendo com que o animal tenha mais aptidão para aprender. "Talvez tenha ocorrido isso no processo de seleção e tenham prevalecido os animais com habilidade para aprender as coisas rapidamente."

É  dos lobos, aliás, que vêm as características que os cães têm de lealdade e respeito aos homens. Dois estudos recentes publicados na "Science" mostram que os cachorros descendem de lobos domesticados pela primeira vez na Ásia entre 40 mil e 15 mil anos atrás. Esses animais tiveram de aprender a entender o ser humano para ser capaz de viver com ele. Para César Ades, foi a capacidade cognitiva dos cães que permitiu essa adaptação.

Isso deve ter sido fácil, já que os lobos vivem em sociedade muito bem, compreendem a hierarquia e são fiéis ao seu líder, explica o pesquisador Eduardo Ottoni, especialista em comportamento animal na USP. "Não é por acaso que o cachorro é a espécie mais antiga a se relacionar com os homens. Na cabeça dele não somos uma outra espécie, mas membros de um grupo. Ele nota que é subordinado na hierarquia e se encaixa bem nesse papel. Hoje é um produto da relação com o homem."




(texto publicado na revista Galileu nº 138 - janeiro de 2003)





                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      


Nenhum comentário:

Postar um comentário