No mundo de hoje, parece cada vez mais difícil confiar nas pessoas mas acredite: o maior risco que você corre ao estender a mão e botar fé no outro é o de mudar o mundo - e a sua própria vida
Aos 42 anos, Aline Fagundes decidiu reacender um sonho que não tinha realizado na adolescência: fazer intercâmbio. O desejo de juventude, no entanto, deu de cara com marido, dois filhos, emprego, casa própria, uma vida completamente estável. Foi quando a juíza do trabalho teve uma ideia: por que não hospedar estudantes intercambistas em casa?" Todos ficaram empolgados e logo começamos a pesquisar diversos programas que cadastrassem famílias voluntárias", conta a gaúcha. A procura deu certo e, desde 2009, Aline, o marido Renato e os filhos, Artur e Martina, abrem a casa e a vida, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para jovens completamente desconhecidos, estudantes estrangeiros que vêm fazer intercâmbio no Brasil.
Entre a expectativa do primeiro encontro e os receios e constrangimentos no processo de adaptação, Aline vive a experiência de peito aberto, sem medo, pronta para o novo. E garante: vale a pena. O que não quer dizer que seja fácil. Confiar em pessoas que, de início, são apenas nomes em um formulário exige esforço de ambas as partes: só assim se constrói, dia após dia, uma relação de comprometimento com o outro. "É algo que está em construção e precisa de cuidado para não se deixar destruir pelas dificuldades", conta. "O saldo, asseguro, é positivo. Mas demanda envolvimento", afirma, otimista, mas com os pés no chão.
Foi por causa dessa crença de que tudo pode dar certo que o casal conseguiu fazer da americana Rebecca, 23 anos, e dos alemães Paulina, 15, e Fynn, 16, seus "filhos com sotaque". Como qualquer filho, eles tinham seus direitos - as chaves da casa e a liberdade para receber os amigos, por exemplo -, mas também seus deveres: nada de sair sem avisar e sem hora para voltar. Dar esse voto de confiança, diz Aline, cria um compromisso: "Eles se sentem mais responsáveis e querem provar que são dignos de confiança que recebem". A estratégia funcionou e poucos foram os deslizes: uma vez, Fynn se aproximou dos embates com a polícia em uma das manifestações que ocuparam as ruas de Porto Alegre, em 2013, apesar de todas as advertências da família; outra vez, Paulina passou do ponto na primeira (e última) festa que deu na casa dos pais brasileiros. Mas, nada que os fizesse perder a confiança já conquistada. Não seriam esses pequenos desvios do caminho que podariam em Aline o desejo genuíno de cultivar a confiança no outro. "Desconfiar é um sentimento sofrido, frustrante, que deriva do medo. E quem gosta de ter medo?", questiona. "Se eu não partisse do pressuposto de que as pessoas estão de boa-fé, teria que desistir da vida."
Confiar é preciso
Na vida da família Fagundes, acreditar no outro já faz parte do cotidiano. Eles parecem viver plenamente esse sentimento antigo e fundamental para as relações entre seres humanos. É a confiança - do latim con fides, ou seja, com fé - que coloca o mundo em movimento. É ela que faz você contar um segredo para o seu melhor amigo, mergulhar com tudo numa história sem garantias de final feliz, dormir na estrada enquanto o outro dirige, entregar o joelho para o médico na sala de cirurgia, deixar seu filho sair para passear com a tia, acreditar que amanhã vai ser melhor que hoje. Tudo isso só é possível porque nós, mesmo sem perceber, praticamos diariamente o exercício da coragem de acreditar - no outro, nas instituições, no futuro. "Se todos esses atos e laços de confiança não acontecessem, a vida seria praticamente impossível", diz a psicóloga Camila Campanhã, do Laboratório de Neurociências Cognitivas da Universidade Mackenzie, em São Paulo. "Nós, seres humanos, somos sociáveis e precisamos do outro para sobreviver. Então, não há possibilidade de não estabelecer nenhum grau de confiança com nada ou ninguém."
E é assim desde a pré-história, quando nossos antepassados começaram a viver em comunidade e sentiram a necessidade de compreender quem era o outro e de estabelecer uma comunicação. Enquanto ficavam cuidando da prole na caverna, as mulheres acabaram por desenvolver não só a linguagem, mas também habilidades empáticas: tornaram-se capazes de simpatizar, entender e compartilhar os sentimentos dos membros do grupo. Já os homens, responsáveis pela proteção e o sustento das famílias, passaram a estabelecer laços de confiança para protegerem-se uns aos outros nas caçadas. "Assim como os animais desenvolveram garras para se defender, desenvolvemos habilidades sociais, como cooperação, confiança e reciprocidade, para que pudéssemos sobreviver e prosperar como espécie", explica Campanhã.
Mas hoje, milênios depois, a gente sabe e sente que as coisas já não são bem assim. Vivemos cada vez mais sozinhos e arredios. Essa sensação crescente de desconfiança foi comprovada pelos resultados da pesquisa Retratos da Vida Brasileira, de 2012. Os dados do Ibope apontaram que 62% de nós, brasileiros, afirmamos não ter nenhuma ou quase nenhuma confiança na maioria das pessoas. Nem nos amigos, nem nos vizinhos e muito menos nos colegas de trabalho. A crença geral é a de que boa parte das pessoas quer apenas tirar vantagem, em vez de agir da maneira correta. Só que, sem confiança, o medo vira rotina, o outro se torna apenas mais uma fonte de ameaça. E isso custa caro.
As pessoas não param mais para dar informações a um desconhecido na rua. Enchem a casa de grades e cadeados, com medo da visita indesejada do ladrão. Trabalham nervosos, temendo que o colega lhes passe a perna. Ficam preocupadas quando têm de deixar o carro na rua, imaginando que não vão mais encontrá-lo. Nem entram mais no mar quando estão sozinhas, porque acham que alguém vai passar na areia e levar seus chinelos. E acreditam que não adianta fazer a sua parte, porque o país não tem mais jeito mesmo. Uma triste falta de confiança generalizada que nos leva a pensar: será que ainda dá para confiar em alguém nos dias de hoje? Será que ainda tem alguém que confia em alguma coisa nesse mundo? Bom, parece que nem tudo está perdido. Apesar de tudo, diz a mesma pesquisa, ainda acreditamos que há remédio para essa "síndrome de desconfiança". E a cura começa bem perto: na família.
"O medo e a desconfiança não só reforçam o individualismo, como também corroem os laços de solidariedade, em todas as esferas da vida. A família passa a ser nosso último nicho de segurança e, por isso, continua central", aponta Igor Valentim, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em sociologia econômica e das organizações."Mas não há confiança sem risco, mesmo em relações intermediadas por valores fortemente respeitados, como a família. Confiar em uma pessoa significa acreditar que, quando ela tiver a chance, não irá agir de uma maneira que nos trará algum dano. Confiar é assumir o risco de ser desapontado."
Um dia de cada vez
Alda e Eli Larizzatti conhecem bem esse risco. Há 25 anos, eles deram início a uma dura batalha contra as drogas dentro de casa e se viram obrigados a suspeitar daquilo que tinham de mais próximo: seus filhos. "O problema nos pegou de surpresa, porque não existe família preparada par ter um dependente químico em casa", conta Alda, que, junto com o marido, coordena há 17 anos um grupo que faz parte de uma das mais tradicionais entidades de poio aos parentes de dependentes químicos, a Amor Exigente. "É muito complicado, desestrutura o lar, tudo desaba."
A descoberta do vício foi só o começo de uma longa jornada de dor e culpa - mas também de superação. De maconha a crack, Marcos e Gabriel (nomes fictícios) consumiam de tudo pelas ruas de São Paulo. Os problemas típicos de adolescentes da classe média foram se agravando e trouxeram anos de mentiras, chantagens, manipulações e quebras de promessas. Os rapazes nunca estavam onde diziam estar, raramente cumpriam os horários combinados, prometiam uma coisa e faziam outra. "O que o dependente químico mais faz é mentir. E com tamanha perfeição que acredita na própria mentira", diz Eli. "Só que, com o tempo, você aprende a distinguir a verdade da falsidade. É quando ele perde totalmente a credibilidade, mesmo sendo um filho."
Assim aconteceu. Quanto mais os dois se envolviam com as drogas, mais se enraizava nos familiares o sentimento de desconfiança e desesperança. Os pais tiveram de viver décadas de provação para, enfim, conseguirem reconstruir, com muito cuidado, os laços mútuos de respeito e afeto. Aprenderam que confiança não é só sobre o outro, também tem a ver com a gente. "A traição foi profunda e a dor, grande demais. Mas demos um jeito de juntar os cacos", conta Alda. "A droga não podia ser maior do que o amor que sentimos por eles."
Marcos foi internado em uma clínica de recuperação, está limpo há uma década e hoje coordena um grupo dos narcóticos anônimos. Gabriel, o caçula da família Larizzatti, teve uma internação involuntária, depois que o vício o levou a sair da casa dos pais para morar na favela Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista. "Ele ficou me jurando de morte", lembra a mãe, emocionada. "Dizia que a internação não ia durar para sempre e que, quando saísse, eu seria a primeira pessoa que ele ia matar." Felizmente, Gabriel respondeu bem ao tratamento e, há cinco anos, pode dizer, orgulhoso, que é um dependente em recuperação. Mas a guerra ainda não foi vencida. Após a internação, iniciou-se uma das fases mais difíceis de todo o processo: o resgate da confiança em si mesmo e, sobretudo, da confiança dos outros. Foi - ainda é - um processo lento, feito muito mais com atitudes do que com palavras, baseado na certeza de que a confiança é também uma cobrança.
E é assim - sem nenhuma recaída e com carteira de trabalho assinada - que a família vem se reconstruindo. Com nova vida, Marcos e Gabriel tentam fortalecer, cada um a seu tempo, as relações com os pais e irmãos. Uma certa desconfiança ainda existe, é verdade, mas isso é até positivo. Em certo grau, é ela que deixa todos em alerta. "Aprendemos a não amolecer, a não dar mais mordomias, não facilitar. Acredito na recuperação dos nossos filhos e, hoje, confiamos neles. Mas nossa confiança é exercida com autoridade e se renova a cada dia", dizem os pais. Para a família Larizzatti, todo dia é sempre um novo começo.
De peito aberto
Chinaider Pinheiro, 40 anos, jamais imaginou que, um dia, essa mesma possibilidade de recomeço viraria a sua rotina. Para quem vivia na mira da polícia, qualquer minuto poderia ser o último: ele foi, entre 2006 e 2007, o chefe do tráfico de cinco favelas dominadas pelo Comando Vermelho e se tornou um dos bandidos mais procurados do Rio de Janeiro.
Nascido e criado em Vigário Geral, uma das principais comunidades da zona norte carioca, ele entrou para o crime com um único objetivo: proteger o irmão. Mas o poder e o dinheiro fácil rapidamente o seduziram, e ele ficou no tráfico, mesmo depois da morte do protegido. A vida de traficante, porém, cobrou seu preço: em 1997, ele foi parar atrás das grades, aos 21 anos. Entre fugas e recapturas, passou uma década preso no que chama de mundo da desconfiança. "Lá dentro, você tem que desconfiar até da verdade mais absoluta. É fundamental para sobreviver."
Talvez por isso Chinaider tenha se mostrado tão reticente quando recebeu de José Júnior, coordenador do grupo cultural AfroReggae, a inesperada proposta que mudou a sua vida: largar o crime e se preparar para ser uma liderança social. "Foi uma confiança que recebi com desconfiança", diz ele. "Por outro lado, vi que todo o lucro no mundo do tráfico não valia o preço de voltar para a cadeia, parar numa cadeira de rodas ou no cemitério."
Segundo o professor Valentim, a reação é natural. Uma pessoa muito desconfiada estranha quando alguém confia sem precisar de provas ou de um histórico. "Essa pessoa já naturalizou tanto a desconfiança que acha chocante e até suspeito que se confie em um desconhecido", avalia.
Mesmo conhecendo o ex-traficante apenas de vista, José Júnior enxergou a possibilidade de transformar a liderança de Chinaider no crime em algo positivo. As pessoas poderiam ver seu exemplo e, então, passar a acreditar que vale a pena mudar de vida e reconquistar a confiança da socieadade. Ele estava certo. Em 2009, Chinaider entrou no projeto Empregabilidade e, desde 2011, coordena este que é um dos principais programas do AfroReggae. De lá para cá, cerca de 3 mil ex-detentos já foram atendidos e, pelas suas mãos, mais de 1.500 têm um registro na carteira de trabalho. "Embora meu passado tenha me tornado uma pessoa desconfiada", diz ele, "acredito plenamente na capacidade de um egresso se regenerar e agir de forma correta na sociedade, assim como eu faço há cinco anos." Agora, Chinaider faz pelos outros o mesmo que fizeram por ele. Doando-se todos os dias, sem medo, virou uma peça fundamental dessa corrente de confiança que não está estampada nos jornais.
Quando a família Fagundes abre as portas de sua casa para o desconhecido, quando Alda e Eli se esforçam para, todos os dias, renovar sua esperança, quando Chinaider prova o valor de seu exemplo, eles nos mostram que ainda podemos reconstruir nossa maneira de viver, sentir, trabalhar, agir e compartilhar. Só que ninguém consegue fazer isso sozinho. "A confiança", garante Valentim, "é a força que pode nos unir para enfrentarmos a construção de um mundo novo e melhor." O segredo é ousar viver.
(texto publicado na revista Sorria para ser feliz agora nº 38 - jun/jul de 2014)
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