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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O bilionário austero


Com obsessão pelo trabalho e desprezo pela ostentação, Antônio Ermírio de Moraes criou um império industrial baseado no processamento das matérias-primas nacionais

Antônio Ermírio de Moraes concluía os estudos na faculdade de engenharia metalúrgica na Colorado School of Mines, nos Estados Unidos, quando recebeu a notícia de que havia tirado a maior nota da turma em uma das disciplinas. Decidiu festejar bebendo, algo absolutamente normal para estudantes universitários, mas inédito para ele. Aos 20 anos, sua rotina na remota cidade de Golden, onde no inverno a temperatura pode cair a 20 graus abaixo de zero, resumia-se a estudar. O pileque de uísque não lhe fez nada bem, e Antônio Ermírio foi direto para o hospital. O médico descobriu que o estudante nascera com um único rim - nada que lhe afetasse radicalmente a vida, mas uma condição que recomendava não abusar do álcool.

Concluída a faculdade, o desejo de Antônio Ermírio, nascido em São Paulo em 1928, era fazer um doutorado, entretanto ele precisou voltar ao Brasil para ajudar o pai nos negócios da família. Se o menino é o pai do homem, os quatro anos no Colorado deixaram uma marca no futuro empreendedor. A austeridade, e não apenas com relação à bebida, sempre foi a norma para Antônio Ermírio de Moraes, morto de insuficiência cardíaca, aos 86 anos, na noite de domingo 24 de agosto. Ele vestia ternos surradíssimos, alguns com décadas de uso, e quase sempre se apresentava amarfanhado, com a gravata fora do lugar. Nunca quis saber de guarda-costas, nem mesmo quando eram frequentes os sequestros de empresários. Dirigia o próprio carro, por muitos anos um Santana rodado, de seu escritório, na Praça Ramos de Azevedo, no centro de São Paulo, até sua casa no Morumbi. Perdeu alguns relógios nesse trajeto, ao ser atacado por ladrões no trânsito, e também sofreu assaltos na casa de praia e na casa em São Paulo. "Se for para ter segurança particular, é melhor deixar o Brasil", dizia.

Sob o comando de Antônio Ermírio e seu irmão mais velho, José Ermírio, a Votorantim, originalmente uma indústria têxtil, fundada em 1918 pelo seu avô materno no interior paulista, transformou-se em um dos maiores conglomerados do mundo. O marco na expansão foi a fundação da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), em 1955, a primeira processadora desse metal no país.A presidência do grupo foi assumida por Antônio Ermírio em 1973, depois da morte do pai. "Sempre baseei nossos ramos industriais nas matérias-primas nacionais", afirmou certa vez. O grupo cresceu à feição de seu líder, de maneira disciplinada, com muito planejamento e evitando assumir dívidas e riscos em demasia. Além do alumínio, as dezenas de fábricas do grupo produzem aço, cimento, celulose e suco de laranja. São 43 000 empregados, em vinte países. No ano passado, o faturamento superou 30 bilhões de reais.

A obsessão de Antônio Ermírio pelo trabalho não era folclore. Suas jornadas no escritório e nas fábricas iam das 7 da manhã às 10 da noite. Era comum dar expediente aos sábados e eventualmente aos domingos. As férias eram raras. Nem mesmo a lua de mel na Europa, em 1953, foi destinada exclusivamente ao lazer. Com a mulher, Maria Regina, conheceu fábricas na Áustria e na França. Para ele, o fato de ter nascido em uma família rica nunca foi motivo para acomodação. Seu pai, José Ermírio, descendia de usineiros pernambucanos abastados. Estudou na Colorado School of Mines, a mesma que o filho frequentaria, e trabalhou em minas ao voltar para o Brasil. Em viagem à Europa, conheceu Antonio Pereira Ignacio, dono da Votorantim, então com atividades nos ramos de tecidos, cal e cimento. José Ermírio foi trabalhar com Ignacio e casou-se com sua filha Helena. A cerimônia ocorreu no hotel Esplanada, em São Paulo, prédio que seria comprado pelos seus filhos para dar sede à Votorantim.

Na vida empresarial, Antônio Ermírio amargou a derrota na privatização da Vale do Rio doce, em 1997. Outra frustração dolorida foi na política, quando saiu candidato a governador de São Paulo, em 1986. Seguia mais uma vez as trilhas do pai, que fora senador por Pernambuco. Não se elegeu. Ficou atrás de Orestes Quércia. Nacionalista, anteriormente, em 1978, havia assumido uma posição política ao assinar, ao lado de outros grandes empresários, o Documento dos Oito, em que pediam a redemocratização e recomendavam mudanças na política econômica. O empresário resolveu expressar as suas ideias escrevendo peças de teatro. A primeira delas, Brasil S.A., tratava do mundo empresarial. Depois vieram mais duas, uma sobre a saúde pública e outra sobre a educação. Segundo o sociólogo José Pastore, seu biógrafo e amigo de vários anos, o teatro foi também a maneira de o empresário, fechado e muitas vezes distante da família, expressar as emoções represadas. Diz Pastore, em biografia lançada em 2013: "Ele passou a pôr na fala dos personagens os sentimentos que não era capaz de verbalizar".

Não se sabe se a austeridade e a mania por trabalho eram doenças, porém Antônio Ermírio escolheu usar parte de seu pouco tempo livre para administrar um hospital. De 1971 a 2008, foi presidente da Beneficência Portuguesa de São Paulo, em caráter filantrópico. Também em 2008, afastou-se do dia a dia da Votorantim, por razões de saúde. Dois anos antes, tinha recebido os diagnósticos de Alzheimer e hidrocefalia. Teve nove filhos, dois dos quais já mortos, vítimas de câncer.



(texto publicado na revista Veja edição 2389 - nº 36 - ano 47 - 3 de setembro de 2014)




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