Pages

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Um antebraço - Danuza Leão


Ela tinha uma reunião de negócios marcada para as 11h30. Era um encontro que interessava a ela mais do que aos outros participantes. Então, se aprontou da melhor maneira e chegou na hora exata. Aos poucos, os executivos foram aparecendo; todos bem-vestidos, com pastas importadésimas e canetas extraordinárias. Uns dez minutos depois, veio um rapaz de uns 35 anos, de jeans, mocassins sem meias e camisa para fora da calça. Deu um bom-dia geral, tirou do bolso uma Bic e um bloquinho e começou a tomar nota do que diziam. Por um problema geográfico, ficou perto dela; aliás, numa cadeira um pouquinho atrás.

Atenta, ela prestava atenção em tudo e dava opiniões. Mas houve um momento em que sua caneta caiu e o rapaz se abaixou para pegar e entregar a ela - que olhou e agradeceu sorrindo. Ele também sorriu e ela tremeu nos alicerces. Não que o rapaz fosse uma beleza rara, mas tinha uma masculinidade muito evidente - e ela não conseguiu prestar atenção em mais nada. Ficou quieta, mais já completamente baratinada. Aí, olhou para o lado dele e viu, bem de perto, seu antebraço esquerdo e sua mão. A partir desse momento, adeus, reunião.

Era um antebraço forte, no qual havia, na parte interna, algumas veias - aquelas de que faz esporte, mas não demais. A mão era grande, daquelas que toda mulher espera de um homem. Ele usava relógio? Ela não fazia a menor ideia, embora, se fosse outro homem usando um Cartier ou um Rolex, teria percebido - afinal, seus olhos tinham sido educados para isso.

É claro que ela não conseguiu mais manter o foco nem defender seus interesses. Só via aquele braço e aquela mão; e só pensava que poderia estar menos distinta e fantasiada de executiva. Ah, a reunião já ia acabar, ela não podia fazer nada e provavelmente nunca mais o veria. Aconteceu assim: num determinado momento, todos se levantaram, os mauricinhos se despediram dela com um beijo e entre eles houve um aperto de mão. Para ele, deram um despreocupado tchau. Ele não era do mesmo nível social ou intelectual da turma. Ao sair, ela estendeu a mão para ele, que mais uma vez apenas sorriu.

Era, digamos, um brasileiro típico. Moreno, daquele tipo com quem você cruza numa rua do centro da cidade e talvez nem olhe. Não tinha nada de especial, mas aquele antebraço e aquela mão, meu Deus, só chamando a polícia. A polícia não, os bombeiros. Ela saiu sozinha pensando em quanto o mundo é cruel com as mulheres. Se fosse o contrário e no lugar dela estivesse um homem de negócios, ele saberia muito bem o que fazer - e faria. Daria um jeito de perguntar seu nome, seu cargo na firma, onde morava, se queria carona, se poderia dar seu telefone de casa para esclarecer certas dúvidas... A partir daí, tudo seria bastante fácil.

Mas ela é mulher, e certas coisas as mulheres não devem fazer. Eles podem, mas elas não. Até acham que têm os mesmos direitos que os homens, só que não têm. Para elas, muitas coisas continuam proibidas e será preciso rolar muita água por debaixo da ponte para que, numa situação como essa, a mulher possa se comportar como um homem - ou como qualquer pessoa. É nessas horas que se tem muita inveja. O antebraço e a mão dele continuam tão presentes em sua memória que, num estádio de futebol lotado, ela seria capaz de, do alto de sua cadeira especial, enxergá-lo no outro lado do campo, na arquibancada. Que vida mais injusta.




(texto publicado na revista Claudia nº 10 - ano 52 - outubro de 2013)


Nenhum comentário:

Postar um comentário