quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Uma vida além da aids - Adriana Negreiros


Aos 42 anos, a autora do best-seller Depois Daquela Viagem tem mais tempo de vida com aids do que sem o vírus e é hoje inspiração na luta contra o preconceito

Quando se olhou no espelho e viu, no meio de seus fartos cabelos negros, um solitário fio de de cabelo branco, Valéria Polizzi tomou um susto - e abriu um sorriso. Nem em seus maiores delírios ela achava que teria cabelos brancos. Não porque se considerasse imune aos primeiros sinais da maturidade. Simplesmente pensava que nunca ficaria velha porque estaria morta antes disso. Sim, dramático assim. "Se alguém me falasse que eu chegaria aos 42 anos, seria capaz de rir", conta ela, que completa 43 anos este ano. Valéria Polizzi tem aids, ou síndrome da imunodeficiência adquirida, desde 1988. Contraiu o vírus HIV na primeira relação sexual, com um namorado, aos 16 anos. Seis meses após o começo do relacionamento, os dois transaram sem camisinha e o rapaz, ela descobriria depois, era usuário de drogas injetáveis. No ano seguinte, quando o romance já havia acabado, a garota começou a sentir fortes dores de estômago. Estava prestes a fazer uma viagem internacional e, com medo de se sentir mal em outro país, resolveu investigar a causa daquele incômodo. Um exame mostrou que a menina tinha sapinho no estômago, uma doença associada à baixa imunidade, um dos sintomas da aids. Desconfiado, o médico que atendeu Valéria pediu exames de HIV. Naquela época, a aids era conhecida como a "peste gay", doença fortemente associada aos homossexuais. Até para um infectologista o caso de uma adolescente infectada soava improvável. Quando o resultado chegou, o médico convocou os pais de Valéria, Victor Polizzi, 71, e Nilza Piassa, 63, e deu a eles a grave notícia. Estupefatos, os pais demoraram a abrir o jogo com a filha. Certa vez, no carro, fingindo naturalidade, o pai introduziu o assunto. "Filha, sabe essa doença sobre a qual estão falando na televisão? Então, não é bem verdade que as pessoas vão morrer logo", disse. Ela compreendeu a indireta. "Caramba, então eu tenho aids!"

Cazuza, Renato Russo...

Com longos cabelos pretos, sorriso de dentes muito alvos e corpo magro, Valéria não parece uma pessoa angustiada ou revoltada. Ao contrário, tem um senso de humor aguçado e ri a todo instante. Mas reconhece que, muitas vezes, cai de tristeza, porque a vida não é fácil. Quando recebeu, lá atrás, a notícia, era tão absurda que a menina não chegou necessariamente a entrar em desespero. Ela ficou em estado de choque. "Era surreal demais", lembra. Na época, as notícias sobre a aids eram as mais aterrorizantes possíveis. Estimava-se que o tempo de vida de um contaminado era de, no máximo, dez anos. Naquele ano, o ator Lauro Corona seria a primeira celebridade brasileira a morrer da doença, aos 32 anos. Na sequência, viriam o cantor Cazuza, também aos 32, a atriz Sandra Bréa, aos 47 e, um pouco mais tarde, o cantor Renato Russo, aos 36. "A aids era uma sentença de morte", afirma Valéria. Além disso, o preconceito era enorme. Pessoas eram demitidas de seu emprego, os amigos se afastavam. Para proteger a paciente, o médico recomendou a ela que não contasse sobre o HIV a ninguém.

Com a "sentença" assinada, a menina começou a fazer as contas. Se havia sido contaminada em 1988, viveria, na melhor das hipóteses, até 1998. Não estaria aqui para presenciar a virada do século. Passou a fazer planos de curto prazo. Abandonou a faculdade de letras porque imaginou que não teria tempo para terminá-la. Dedicou-se, então, a viajar e aproveitar a vida, literalmente, como se não houvesse amanhã -e, como era de se esperar, muitas vezes afundou em uma tristeza profunda, o que a obrigou a tomar antidepressivos, rotina que mantém até hoje.

Em 1993, Valéria viajou para os Estados Unidos. Decidira passar uma temporada aperfeiçoando o inglês na Califórnia. Até aquele momento, ainda não ficara, de fato, doente - nenhuma infecção oportunista havia se instaurado em seu organismo por causa da baixa imunidade. Também havia desenvolvido um certo pavor de médicos. Geralmente, sentia-se alvo de preconceito até mesmo por parte deles, que a tratavam como um ser de outro planeta - a aids, naquela época, decididamente não combinava com um rosto com traços infantis. Muito por causa disso, decidira não tomar o AZT, o medicamento antiviral (só no fim de 1995, o coquetel de medicamentos, que incluía o AZT, passou a ser prescrito aos pacientes, mudando, com vantagens, o tratamento da aids). Também se perguntava de que adiantava adiar o inexorável - a morte próxima. Durante a viagem, porém, muitas coisas mudaram na cabeça de Valéria. Certa vez, por causa de uma crise de tosse, procurou um médico americano. Notou que havia uma diferença na forma como a doença era vista no Brasil e nos Estados Unidos. "O estigma era menor. Não se falava em morte. Falava-se em convivência com o vírus", recorda-se. Num passeio até São Francisco, conhecida na época como "a capital da aids", visitou grupos de apoio ao infectados e viu que havia pessoas vivendo normalmente, apesar do vírus.

Tudo começa a piorar...

Mas, no final de 1993, Valéria começou a sentir-se muito mal. Todos os dias, ao entardecer, era tomada por uma febre altíssima - que invariavelmente sumia no dia seguinte, voltando dali a algumas horas. Os exames mostravam que sua carga viral estava muito alta. Além disso, a garota tinha anemia profunda. De volta ao Brasil para se tratar, recebeu diagnóstico de tuberculose nos rins. Passou três meses internada em um dos melhores hospitais de São Paulo. Nesse meio tempo, teve convulsões, acessos de delírio e foi submetida a um tratamento extremamente agressivo. Às vezes, por causa das dores, sentia ímpetos de desistir. Muitas vezes, pensou em como seria mais fácil se ela simplesmente não acordasse nunca mais de um de seus constantes desmaios. Até aquele momento, poucas pessoas sabiam que Valéria tinha aids. Os parentes e amigos, no entanto, não paravam de perguntar por que a moça não saía do hospital. "Já está ficando ridículo", disse ela, certa vez, para a mãe. "Se eu tivesse câncer, não estaríamos escondendo nada de ninguém. Qual é o problema com a aids? Só porque vão saber que eu transei? Mas todo mundo não transa?", ela se questionava. "Tudo bem. Vamos contar, mas não por telefone. Tem de ser pessoalmente", concordou a mãe. Avós, tios e primos, ouviram a notícia com tristeza, mas deram para a menina a força de que ela precisava.

Um livro best-seller

O apoio de parentes e amigos foi essencial para que Valéria se recuperasse e deixasse o hospital. Em casa, ela continuava com dificuldades para elaborar planos no médio prazo. Mas se animou com a chance de contar sua trajetória de vida em um livro. Em 1997, lançou Depois Daquela Viagem, publicado pela Editora Ática. A decisão de expor as vísceras em letras impressas não foi fácil. Duas coisas poderiam acontecer. Valéria sabe: o livro ser um sucesso, mas também ser um fiasco e, como se não bastasse, ela ainda tatuaria a palavra aids na testa. Num momento em que a doença ainda era vista como um bicho de sete cabeças, não se tratava de uma iniciativa simples. Mas tudo deu certo. O livro foi adotado nas escolas, tornou-se um best-seller e, até hoje, já vendeu mais de 300 mil cópias.

Por causa do sucesso do livro, Valéria passou a ser convidada para dar palestras para adolescentes. Lotou auditórios, distribuiu incontáveis autógrafos, foi estrela da capa da revista CAPRICHO, tornou-se um ícone na luta contra o preconceito. Mais que isso, virou inspiração para outras pessoas infectadas que, desesperadas, confidenciavam a ela o desejo de, por exemplo, tomar remédio contra rato para se matar. Quando se abriu para o mundo, Valéria salvou muitas vidas, inclusive a própria. De cara, percebeu que não era assim, que realmente não ia morrer dali a dois minutos (passou também a tomar o coquetel). Fez faculdade de jornalismo, cursou uma pós-graduação. Numa viagem para a Nova Zelândia, a lazer, conheceu Markus Grundbock, 44, cabeleireiro austríaco. "Sou escritora", ela disse, quando se conheceram. E, evidentemente, ao explicar que tipo de livro escrevera, revelou a ele que tinha aids. Markus, soronegativo, reagiu naturalmente à notícia. Em poucos dias, os dois estavam namorando. Meses depois, se casaram, e Valéria mudou-se para uma pequena cidade nas proximidades de Viena, a capital do país. Nunca tiveram filhos porque tinham dificuldades para encaixar um bebê em suas viagens aventureiras, não por causa do HIV.

Neste ano, em que comemora 43 anos, Valéria completa também 26 anos de contaminação. Os remédios mantêm a infecção sob controle - sua carga viral é indetectável. "Os adolescentes adoram me perguntar o que eu imagino que teria acontecido da minha vida se não tivesse aids", ela revela. "Eu não sei. Ela faz parte da minha vida. Eu tenho mais tempo de vida com aids do que sem ela." Os remédios que toma, porém, provocam efeitos colaterais, como a lipodistropia, uma alteração na distribuição da gordura do corpo que deixa as pessoas com a barriga saliente, mas com braços e pernas finíssimos. "Não é verdade que é OK ter aids, como muitos pensam", diz ela, que se preocupa com um certo relaxamento dos brasileiros no que se refere à prevenção da doença.

Recém-separada de Markus, Valéria voltou a São Paulo no ano passado. Ela cogita escrever outro livro (publicou também Papo de Garota, em 2001, e Enquanto Estamos Crescendo, de crônicas, em 2003), embora receite ter de voltar ao tema da aids. "Sei que faz parte da minha vida, mas às vezes o assunto cansa", desabafa. Enquanto isso, lida com questões que, para ela, nunca lhe diriam respeito - como a morte de parentes. Recentemente, enfrentou a perda da avó, com quem tinha uma forte relação afetiva. Valéria nunca se preparou para a morte dos outros, só para a própria. Mas ela sabe que isso tem mudado. Tanto que, nesse exato momento, tem dedicado seus dias a pensar no futuro, no que fazer, enfim, da vida.




(texto publicado na revista Contigo nº 2026 - 17 de julho de 2014)





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