O composto da maconha deve ser aprovado no Brasil contra a epilepsia e a esquizofrenia. Mas atenção: é a substância inofensiva da Cannabis, sem relação com os efeitos tóxicos da planta
"Finalmente consegui ficar cozinha em casa. Fui para a cozinha e fechei todas as janelas. Peguei a sacola, escondida no armário, e tirei um pé de maconha. Coloquei as folhas, uma por uma, na panela e cobri com azeite. Levei a infusão em banho-maria, por três horas. Obtive dali um líquido oleoso, esverdeado. Fui pegar meu filho Miguel, de 5 anos, que passava o dia com os avós. Preparei o arroz e o feijão e pinguei sobre a comida vinte gotinhas de óleo. Ele comeu normalmente. Poucos minutos depois, seus olhos ficaram vermelhos. Em doze horas, repeti a dose. A vermelhidão se repetiu. Mas, dessa vez, Miguel ficou prostrado, com um sorriso frouxo. Fiquei apavorada e parei com tudo. Nunca mais."
Oferecer o óleo de maconha a Miguel foi o último recurso da paranaense Priscila Inocente no desespero em livrar o filho de um dos mais cruéis distúrbios neurológicos: a epilepsia. O menino chegava a sofrer até trinta convulsões diárias. Dada a violência das crises, em algumas ocasiões ele era arremessado contra a parede. Com a alquimia doméstica, Priscila pretendia isolar das folhas de maconha apenas uma substância, o canabidiol, eficaz no controle dos surtos epiléticos. Não deu certo. Miguel ficou sujeito também aos efeitos psicotrópicos da planta. Três meses depois, Priscila recebeu uma remessa de canabidiol dos Estados Unidos, enviada clandestinamente por um amigo. Desde então, diariamente, Miguel é tratado com a substância. São doze bolinhas, cada uma do tamanho de um grão de arroz, diluídas em óleo e tomadas como xarope. As crises foram reduzidas a uma por dia, e bem mais leves. O menino voltou a dormir sozinho. Recuperou a coordenação motora e hoje consegue se divertir com os próprios brinquedos. No próximo ano, Miguel trocará a escola especial por uma regular.
Hoje, no Brasil, 600 000 crianças, como Miguel, são portadoras de epilepsia grave, refratária aos anticonvulsivantes tradicionais. Cerca de 500 famílias usam o canabidiol. Como o produto é proibido no país, a maioria faz como os Inocente e consegue o canabidiol ilegalmente. Somente 58 famílias importaram o composto nos moldes da lei, o que pode demorar cerca de dois meses. Há ainda outra dificuldade. "Infelizmente, muita gente, inclusive médicos, confunde o canabidiol com a maconha droga", disse a VEJA o bioquímico búlgaro Raphael Mechoulam, pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém e responsável por desvendar a estrutura química da substância, na década de 60. Graciele Pereira enfrentou o medo do neuropediatra de Clara, sua filha de 4 anos, vítima de epilepsia. "Depois que nosso médico se recusou a assinar a papelada para a importação do produto, não nos restou outra saída senão trazer o canabidiol diretamente dos Estados Unidos", diz ela. A menina tomou o composto há um mês e meio. Desde então, as crises cessaram. E Clara, que não tinha controle dos movimentos, na semana passada conseguiu segurar um lápis.
Até outubro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pretende dirimir dúvidas ou confusões em relação à prescrição terapêutica do canabidiol. Está prevista a votação de uma resolução que oriente os médicos brasileiros sobre o uso do composto. Para que ela entre em vigor, é necessário que quinze dos 28 presidentes dos conselhos regionais deem o o.k.. "A possibilidade de a resolução ser reprovada é remotíssima", diz o psiquiatra Emmanuel Fortes, vice-presidente do CFM. Além da epilepsia, o documento deve indicar o composto também para os casos de esquizofrenia resistentes às terapias tradicionais. A resolução pode incluir a insônia, o Parkinson e a ansiedade na lista das afecções passíveis de tratamento com o composto, porém apenas em casos excepcionais, depois de submetidos a uma avaliação de juntas médicas. isso porque os estudos sobre o uso do canabidiol para tais doenças ainda estão em estágios iniciais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pode tirar o canabidiol da lista das substâncias proscritas para enquadrá-lo no grupo dos compostos controlados, que exigem a retenção da receita médica.
O canabidiol é um dos 480 compostos da maconha. Extraído do caule e das folhas da planta, a substância não é psicoativa nem tóxica. o que promove o "barato" do cigarro de maconha é o tetraidrocanabinol (THC), substrato da resina e da flor da Cannabis sativa. É ele o responsável pela alteração de raciocínio, lapsos de memória, perda cognitiva e dependência. A planta usada como droga é manipulada de forma a conter níveis elevados de THC e baixos de canabidiol. Nos Estados Unidos, o composto é liberado em 21 estados, como suplemento alimentar. Sob a forma de pasta, cristais, spray ou gotas, o canabidiol é vendido em farmácias de manipulação ou diretamente com fabricantes. São os próprios produtores que controlam a qualidade de seus produtos. Todos, porém,têm de seguir a regra de não ultrapassar a quantidade de 0,6% de THC nos produtos com canabidiol, de modo a não oferecer riscos ao paciente. Aqui vale lembrar: quando os produtos são misturados nas mesmas proporções, o canabidiol reduz drasticamente os efeitos indesejáveis do THC. Ou seja, o canabidiol não tem nada a ver com a maconha droga.
O Brasil sedia um dos mais importantes centros de estudos sobre o canabidiol do mundo. É o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT), coordenador por pesquisadores da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Em parceria com a Universidade Hebraica de Jerusalém, o instituto é formado por oito centros de pesquisa, em cinco estados. Estão em andamento 32 pesquisas sobre o assunto, e a previsão é que, em 2015, outras 120 sejam lançadas. Os trabalhos sobre o uso do canabidiol no controle da esquizofrenia são surpreendentes. A doença psiquiátrica se caracteriza como uma das mais refratárias a tratamentos. Foram acompanhados 32 pacientes, tratados exclusivamente com canabidiol. Durante as duas semanas do estudo, chegou-se à remissão dos principais e mais terríveis sintomas da esquizofrenia: os delírios, as alucinações e os problemas de coordenação. Além disso, o canabidiol não apresentou as reações adversas típicas dos antipsicóticos, como tremores no corpo e sonolência. Diz o psiquiatra José Alexandre Crippa, da USP de Ribeirão Preto: "Com o canabidiol, estamos entrando em uma nova era da farmacologia."
Como o canabidiol e o THC agem no cérebro
A planta da maconha contém cerca de 480 compostos. Desses, oitenta pertencem à família dos canabinoides, substâncias com capacidade de atuar sobre o cérebro humano. Os canabinoides mais importantes são o canabidiol, inofensivo, e o tetraidrocanabinol (THC), responsável pelo vício e pelos efeitos psicotrópicos da droga.
Canabidiol
Encontrado, sobretudo, no caule e nas folhas. Compõe cerca de 1% da planta. Não tem nenhum efeito tóxico.
Interfere na metabolização da anadamida, substância associada à regulação dos neurotransmissores dopamina, GABA e glutamato. O canabidiol só entra em ação quando há um desequilíbrio na produção de anandamida, que pode estar alterada na epilepsia e na esquizofrenia.
As doenças para as quais o efeito do canabidiol está documentado...
- Epilepsia
- Esquizofrenia
... e as que estão em estudo
- Ansiedade
- Transtorno obsessivo-compulsivo
- Insônia
- Parkinson
THC
Presente, principalmente, na resina e na flor da planta, representa cerca de 10% do total de substâncias encontrada na maconha. É o responsável pelos efeitos psicoativos da droga - alteração no raciocínio, na memória e perda cognitiva.
Com ação semelhante à da anandamida, o THC tende a ocupar seu lugar nos processos fisiológicos cerebrais. Por isso, interfere no funcionamento da química cerebral - inclusive em pessoas saudáveis. O efeito do composto varia conforme a região do cérebro afetada:
- No córtex, atua nos neurotransmissores glutamato e dopamina, alterando o raciocínio e a atenção
- No sistema límbico, atua na dopamina, deflagrando os efeitos psicotrópicos da droga
- Nos gânglios da base, atua na dopamina, comprometendo o sistema motor
- No hipocampo, age no glutamato, alterando a memória
Onde agem
Os dois compostos atuam no chamado sistema canabinoide, região que abrange o córtex, o sistema límbico, os gânglios da base e o hipocampo. As ações cerebrais das substâncias, no entanto, são distintas.
(texto publicado na revista Veja edição 2391 - ano 47 - nº 38 - 17 de setembro de 2014)
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