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sábado, 20 de dezembro de 2014

"Adotei uma menina com aids" - Maria Laura Neves


Famosa por suas aventuras em família a bordo de um veleiro, Heloísa Schurmann lança livro sobre Kat, a criança que ela adotou, levou para dar a volta ao mundo e criou até os 13 anos, quando perdeu a batalha contra o HIV

Foi um presente conviver com Kat, minha filha do coração, que partiu cedo, aos 13 anos. Aprendi o que é o amor incondicional ao me dedicar a uma pessoa tão especial. Foi uma escolha tê-la em nossa vida, ainda que por pouco tempo. Faria isso outra vez. Conheci os pais dela em 1991, em Opua, na Nova Zelândia. Robert, o pai, era neozelandês e se aproximou do veleiro ao ver pendurada a bandeira de nosso país, porque Jeanne, sua mulher, era brasileira. Eu e meu marido, Vilfredo, ficamos amigos do casal, que também velejava. De volta ao Brasil, continuamos nos comunicando por cartas. Foi assim que soubemos do nascimento de Katherine, no ano seguinte. Ficamos sem notícias da família até 1995, quando Robert veio sozinho, nos visitar no Rio de Janeiro. Trazia Kat no colo, na época com 3 anos. Perguntamos por Jeanne, e ele respondeu que ela havia morrido um ano antes. Em seguida, perguntou se podia nos acompanhar em uma viagem de Santos a Santa Catarina, que faríamos nos próximos dias.

No segundo dia a bordo do veleiro, ele contou que Jeanne morrera em decorrência da aids. Antes de engravidar, contraíra o vírus HIV em uma transfusão sanguínea. Só descobriu que era portadora quando a filha tinha 1 ano e 2 meses. Robert e Kat também haviam sido infectados. Ele disse que estava mal e pediu que cuidássemos da filha para ele. Os parentes de Jeanne não tinham condições, e ele não podia contar com sua família. Fiquei surpresa com o pedido, porque via que ele era muito apegado à menina. Eu e Vilfredo conversamos com nossos três filhos - Wilhelm, 18 anos, David, 21, e Pierre 26 - e decidimos ficar com Kat. Os meninos só se preocuparam com minha reação diante do baque da morte dela, que parecia iminente. Os médicos diziam que Kat tinha apenas seis meses de vida. Respondi aos meninos que, quando isso acontecesse, acharia um jeito de lidar com minhas emoções. Mas ainda não era o momento de pensar naquilo.

Em Portobello (SC), começamos os trâmites da adoção. Como Kat precisava de um período de adaptação, Robert alugou um quarto em uma pousada. Durante três meses, ela teve duas casas. Passava algumas noites com ele e outras conosco. Quando chegou a hora de Robert partir, ele disse à filha que faria uma viagem e ligaria de tempos em tempos - promessa que cumpriu religiosamente. Na verdade, ele ia se tratar na Nova Zelândia. Anos depois, soubemos que não tinha ido embora na data combinada. Ficara mais três dias hospedado na pousada, nos espiando de longe, para ver se cuidávamos bem da sua menina.

Levamos Kat para fazer um tratamento nos Estados Unidos. Na volta, a matriculamos na escola e na natação. Os seis meses dos médicos se passaram, e ela estava ótima. Optamos por não falar sobre o HIV com ela. Dizíamos que os remédios eram vitaminas e decidimos levá-la em nossas viagens de barco. Em 1997, demos a volta ao mundo com nossa princesa a bordo. Ela escalou montanhas e vulcões, mergulhou em alto-mar, nadou com golfinhos. Quando Robert morreu, em 2002, não perguntou o motivo. Aos 12 anos, ela pegou caxumba e se revoltou. Questionou por que, mesmo tomando tantas "vitaminas" ficava doente com frequência. Aí contei a verdade: os pais tinham morrido em decorrência do HIV e ela era portadora do vírus. Kat quis saber se ia morrer também. Falei que não sabia e que morríamos de tantas causas. Foi o momento mais difícil da minha vida: choramos juntas até o dia clarear.

Aos 13 anos, minha princesa teve bronquite. Num sábado, me pediu para pintar um quadro. Quando terminou, me entregou e disse: "Este é meu coração. Estou deixando para você lembrar sempre de mim". Não levei a brincadeira a sério. Achava que era passageiro. No outro dia, Kat foi internada com pneumonia em um hospital de São Paulo, às 20 horas. À meia-noite estava sedada. Na madrugada, recebemos no hospital a notícia de que não tinha resistido a duas paradas cardíacas. Eu não queria acreditar. "Como assim?", perguntei à médica que veio conversar. Foi uma facada no meu coração. Senti que o mundo havia parado, e eu também.

Kat me ensinou que temos de aproveitar intensamente as pessoas enquanto estão conosco. Com ela, voltei a ser menina. E aprendi a cuidar mais de mim: se eu ficasse doente, quem iria olhar por ela? Cada membro da família tirou uma lição dessa convivência, pois Kat tinha muita energia e nunca se colocou como vítima. Era forte. Ainda mando e-mails para o endereço dela. Podem me chamar de louca, não ligo. Certa vez, voltando de Miami, abri a janela do avião e pensei nela. Como gostava de voar! Naquela hora, passou uma estrela cadente. Não sou mística nem espírita, mas sei que era uma mensagem dela.



(texto publicado na revista Claudia - novembro de 2012)




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