quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Morrer de véspera - Diana Corso


A consciência da morte obriga a objetivar as escolhas: não teremos tempo de ser e ter tudo

Bilbo tem 13 anos. Para humanos é o fim da infãncia, na sua trajetória canina é o fim da via. Mas isso não é novidade para ele, nem para nós. Já faz cinco anos que dois veterinários diferentes lhe deram pouco tempo de vida. Alegavam, o que deve ser verdade, pois apareceu nos exames da época, que ele tinha o coração quase do tamanho da caixa torácica e 30% da função renal. A não ser que um milagre tenha acontecido, isso só pode ter piorado. Na ocasião lhe receitaram remédios, ração especial, uma vida de velho. Ele detestou, é próprio da sua raça a infância eterna. Nenhum buldogue francês amadurece, eles só ficam mais lentos. Os tratamentos o tornaram magro e deprimido, ficava de mau humor cada vez que lhe dávamos uma pastilha. Por isso decidimos deixá-lo em paz: que durasse pouco, mas fosse feliz! Cortamos os remédios, a ração insossa. Livre da existência terminal, voltou a brincar e correr. Hoje, se fosse gente, teria uns 80 anos.

Se fosse humano talvez já estivesse morto, de tristeza pela condenação que uma doença grave significa. Às vezes morremos de desesperança, achamos que a vida, se não for infinita, não adianta que dure. A religião tampouco consola, pois a suposta eternidade da alma já não conforta tanto. Mesmo com saúde, é só olhar em volta e acabamos fazendo os cálculos de quantas décadas nos restam. Aliás, o envelhecimento é exorcizado principalmente porque informa do tempo que já gastamos. Velhice é folha corrida. A fantasia de ser eterno e intacto, como os belos vampiros contemporâneos, faz a vida parecer fonte de infinitas possibilidades. A consciência da morte obriga a objetivar as escolhas: não teremos tempo de ser e ter tudo. Mas entre a ignorância do animal e o pensamento negativista dos homens há outras atitudes bem mais inspiradoras.

Convivi com amigos que, em vez de morrer de véspera, fizeram de uma má notícia fonte de sabedoria. Há duas décadas o diagnóstico da contaminação pelo HIV era um prenúncio de morte. Felizmente, não foi assim para todos, mesmo antes da descoberta do coquetel. Em alguns casos, a ameaça de morte os livrou das dúvidas pueris, da adolescência eterna. Agarraram-se à vida com vontade, viabilizaram escolhas profissionais, relacionamentos estáveis. Pressionados, efetivaram-se no emprego da existência. A medicação, que lhes devolveu a imunidade, já os encontrou de bem com a vida. Woody Allen dizia que a palavra mais bela que já tinha ouvido era: "benigno". Sua hipocondria cômica sempre nos lembra que a consciência da morte pode ajudar a repactuar com a vida. Mesmo que o fim seja certo, por que não seguir alegremente? Como meu velho cão.



(texto publicado na revista Vida Simples nº 114 - janeiro de 2012)






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