sábado, 20 de dezembro de 2014

"Pago impostos para sustentar torturadores" - Adriana Negreiros, com a colaboração de Bianca Castro


Termina a batalha de 37 anos da publicitária Clarice Herzog para registrar na certidão de óbito que o marido Vladimir não se suicidou, e sim foi vítima de violência nos porões da ditadura. Mas sua guerra não acabou: ela ainda quer punição para os carrascos

No fim de setembro, a Justiça de São Paulo determinou que a certidão de óbito do jornalista Vladimir Herzog, deveria ser alterada. Em vez de suicídio, consta agora que a causa da morte foram "lesões e maus-tratos" sofridos nas dependências do DOI-Codi, órgão de repressão do governo brasileiro durante o regime militar. É o primeiro resultado concreto da Comissão da Verdade, formada pela presidente Dilma Rousseff para investigar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog foi assassinado após sessão de tortura que incluiu choques elétricos e espancamento. O Exército alegou suicídio e forjou uma foto - hoje famosa - em que aparece enforcado.

A publicitária Clarice Herzog, 71 anos, viúva do jornalista, nunca se conformou com a versão oficial. Na época, tinha dois filhos pequenos, de 9 e 7 anos, e chegou a inventar para eles que o pai tinha morrido em um acidente de carro. Nos anos que se seguiram, lutou para provar que Vladimir Herzog tinha sido vítima de um crime, enquanto se virava em mil para criar sozinha as crianças. "O ódio me moveu", diz. Vladimir, croata naturalizado brasileiro, era jornalista da TV Cultura quando foi convocado a depor no Exército sobre suas relações com o Partido Comunista. Segundo Clarice, ele não incorporava o militante da luta armada nem estava envolvido em qualquer ação terrorista. Por isso, ela jamais cogitou que pudesse ser assassinado.

Clarice é uma profissional bem-sucedida. Atualmente, dirige e preside a empresa de pesquisas Clarice Herzog Associados, em São Paulo. Embora seja frequentemente apresentada como a "víúva de Herzog", desde 1977 é casada com o administrador de empresas Gunnar Carioba. No mês passado, recebeu CLAUDIA para a entrevista a seguir. Estava com um ar ligeiramente abatido e, por mais de uma hora, segurou um batom rosa-claro, até decidir colorir os lábios. "Esses acontecimentos me consomem. Tenho de reviver a morte dele. É um sofrimento."

O que significa a mudança na certidão de óbito para você?

O atestado não me incomodava. Não andava com ele na mão. Para mim e para a sociedade, estava claro que fora assassinato. O que me incomoda é que pago impostos para sustentar torturadores que estão trabalhando em órgãos governamentais. A grande vitória será desmascarar esses caras. Não é revanchismo, temos o direito de saber. Eles devem ser penalizados porque fomos castigados a vida toda. A mudança do atestado provoca a emoção da vitória política, da desmoralização do que acontecia nos porões do DOI-Codi. Há quem declare que não havia tortura na ditadura.

Você chegou a considerar a possibilidade de que seu marido tivesse se suicidado?

Nunca. Eu conhecia meu marido. A primeira pessoa que chegou em casa depois que soube da morte do Vlado foi minha amiga Maria Fátima Pacheco Jordão, feminista. Ela lembra bem que abri a porta gritando: "Mataram o Vlado!" Nunca tive dúvida.

Por que toda essa certeza?

Vlado era uma pessoa incapaz de qualquer violência - e a gente sabia o que acontecia nos porões da ditadura. Além do mais, estava numa fase de extrema criatividade. Ele queria fazer cinema, já tinha um roteiro pronto sobre o Antônio Conselheiro (líder da Guerra de Canudos).

Como esse fato desestruturou a família?

É uma desestruturação emocional grande passar por esse tipo de violência. Você não espera que vá acontecer - talvez, se ele fosse da luta armada, até pudéssemos esperar por isso, mas não era o caso. Ele era totalmente contra a luta armada.

Você enfrentou dificuldades financeiras?

Eu trabalhava, mas tive um corte de orçamento de mais da metade - ele ganhava pouco mais que eu. Tive que cortar gastos e, ao mesmo tempo, fiz de t udo para mexer o mínimo possível na vidinha dos filhos - eles continuaram na mesma escola e com as mesmas atividades. O incrível é que a sociedade está tão despreparada para esse tipo de coisa que a escola nem veio falar comigo. Poderia ter ido pedir desconto, mas não fui. Meus pais, os sogros, os amigos, ninguém me deu um tostão. E havia outro problema: nas primeiras semanas, recebemos telefonemas com ameaças. "Matei o judeu, vou acabar de matar os outros", diziam. Cuidei para os meninos ficarem longe do telefone.

Você disse que foi movida pelo ódio após a morte do seu marido. Esse ódio foi embora?

Claro. Mas eu senti muito ódio, sim. Nos dias seguintes, eu andava pelas ruas, via tudo acontecendo normalmente, as pessoas comendo, indo ao trabalho, ao cinema, e eu tinha muito ódio. Mas foi ele que me moveu. Foi a raiva que me fez atuar, tomar decisões, cuidar dos meus filhos.

Você não teve depressão?

Não naquela época - só na menopausa, e aí tomei uns remedinhos. Mas, quando você está a toda, não tem depressão. Ela amordaça. Eu também passei por outra tragédia - meu irmão morreu de aids - e não tive depressão. Mas mudei. Hoje sou uma pessoa pior do que eu era. Sou mais dura. Era mais extrovertida, brincalhona. Agora levo as coisas muito a sério. Eu ficava muito preocupada com meus filhos. E se acontecesse alguma coisa comigo, o que seria deles? Com quem iria deixá-los? Meus pais e sogros já eram velhinhos. Você começa a se preocupar com tudo. O trabalho sempre teve um componente lúdico muito forte para mim e, de repente, o conceito mudou - nada podia dar errado porque eu não podia ficar sem salário. Tinha que defender as minhas crias, sustentá-las.

Muita gente se afastou de você?

Foi um divisor de águas. Uma amiga foi ao velório sozinha e perguntei onde estava o marido. "Escondido embaixo da cama, morrendo de medo", ela disse. Senti bastante rancor. Hoje não sou uma pessoa amargurada. Sou uma pessoa que tem uma grande tristeza - seria até anormal se não tivesse. Mas o rancor passa. Com mais de 30 anos desde a morte dele, anistiei todo mundo.

Inclusive os torturadores?

Não. Eu anistiei os covardes, não os assassinos. Desses que sujaram a mão de sangue eu tenho nojo. São pessoas que assassinaram a trabalho, para obter informações.

Como deu a notícia às crianças da morte do pai?

Eles estavam dormindo quando eu fiquei sabendo. Quando acordaram, fui até a cama deles conversar. Inventei que tinha sido acidente de carro. Para uma criança, polícia mata bandido. Como explicar que havia matado o pai? Mas a farsa durou pouco porque, no dia seguinte, começaram a noticiar o fato. Os meninos foram ao enterro e à missa.

Foi difícil para eles entenderem o que aconteceu?

Muito. Um deles perguntava: "Mas quem matou o papai?" Era uma coisa abstrata demais para eles. Como entender os choques? Era como se o pai tivesse morrido numa cadeira elétrica.

Como era o Vladimir como marido?

Vlado era um cara extremamente ligado ao trabalho. Foi pai e marido carinhoso, mas não brincava com as crianças quando elas eram pequenas. Ele nunca foi de chutar bola com os filhos, não segurava bebezinho no colo. Quando estava lendo os jornais e as revistas, ninguém amolava a paciência dele. Os meninos pediam tudo para mim.

Você se casou de novo dois anos depois de ficar viúva. Como conseguiu se recompor?

Simplesmente aconteceu (risos). No começo, quando íamos ao cinema, tinha dificuldade para segurar a mão dele. Eu nunca quis ser a viúva, fazer da viuvez a minha profissão. E eu sofria com isso. Mas ele, Carioba, sempre foi muito tranquilo: não é de esquerda, não tem isso do movimento. Senão, talvez não tivesse chegado perto de mim.

Por que você sofria?

Eu tinha constrangimento social, culpa. Sempre fui sozinha às homenagens ao Vlado. Uma vez, nos Estados Unidos, tinha um evento de direitos humanos para ir em outra cidade e eu disse (ao segundo marido): "Você fica aqui, eu pego um trem, vou até lá e, na volta, a gente se encontra." Ele: "Não vou com você". Insisti que preferia ir sozinha. "É o meu passado, você não participou disso e não tem que participar". Ele respondeu: "Não é o seu passado porque está acontecendo agora. Se queremos ficar juntos, temos que viver isso juntos". E foi. Mas essa questão pública me incomodava. Descia do palco e ele estava lá me esperando. Tinha a impressão de que aquilo não podia.

Na imagem mais forte de Herzog, ele aparece morto, pendurado pelo pescoço. Como é vê-la repetidamente?

Detesto. É deprimente, doído. Uma vez reclamei para uma revista que, antes de publicar a foto, eles deveriam lembrar que o Vlado tinha família. Um amigo que escrevia um livro disse que essa imagem seria a capa. Avisei: "Não vou tocar nesse livro". Mas não tenho controle, a foto virou ícone.

Qual é a imagem mais forte que você tem dele?

Eu gosto de uma foto nossa, em Nova York, no começo de 1975. E também das fotos com o violão. Vlado tinha um ouvido maravilhoso - falava sete línguas e amava ópera - e dei um violão para ele. "Tá na hora de você aprender a tocar e cantar umas musiquinhas para mim", eu disse. Nas fotos, ele está brincalhão. Eu gostava do sorriso dele.




(texto publicado na revista Claudia - novembro de 2012)






























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