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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Papa Francisco: "O mundo pede a todos os governantes uma vontade efetiva, prática e constante" - Nayá Fernandes


Durante a viagem apostólica do Papa Francisco a Cuba e aos Estados Unidos entre os dias 19 e 27, ele visitou a Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, na sexta-feira, 25.

No seu discurso que foi proferido na LXX Sessão da Assembléia Geral, o Papa lembrou os seus antecessores que estiveram na ONU, como Paulo VI, em 1965, e Bento XVI, em 2008. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades".

Francisco reconheceu a importância da Organização, que em 2015 completa 70 anos, ao mesmo tempo que lembrou haver muitos passos a serem dados, "para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objetivo final que é conceder a todos os países, sem exceção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões."

Reproduzimos a seguir trechos do discurso do Pontífice, que podem ser lidos na íntegra no site do Vaticano (www.vatican.va).

Direito a um ambiente sem exclusão

(...) o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois setores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e econômicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. [...] Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência de um verdadeiro "direito do ambiente", por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos, fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a ação humana deve reconhecer e respeitar, sobreviver e desenvolver-se, se o ambiente ecológico lhe for favorável. (...) Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente os seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas.

Cultura do descarte

O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo fato de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. (...) Esses fenômenos constituem, hoje, a "cultura do descarte" tão difundida e inconscientemente consolidada. O caráter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a esse respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes.

Agendas sociais não bastam

A adoção da "Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável", durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efetivos. "Todavia, não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, embora constituam certamente um passo necessário para a solução dos problemas. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efetiva, prática e constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenômeno da exclusão social e econômica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada.

Não impor

O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana - amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países etc. Isso supõe e exige o direito à educação - mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) -, que é assegurado, antes de mais nada, respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos.

Não à guerra

Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata atuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano intgegral, o ideal de "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra" e "promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade" corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica por meio da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos e, em última análise, irresponsáveis. A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos.

Perseguição religiosa e cultural

[...] Não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte da África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquelas parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu patrimônio cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão. Essas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos.

Narcotráfico

Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenômeno do narcotráfico. Uma guerra "suportada" e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.

O ser humano pode construir ou destruir

"Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (...) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade" [disse ao citar Paulo VI]. Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: "O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas".



(texto publicado no jornal O São Paulo edição 3071 - ano 60 - 30 de setembro a 6 de outubro de 2015)

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