O ensino brasileiro celebra o vencedor e despreza o esforço para chegar lá, comprometendo o gosto pelo saber e o desenvolvimento pessoal da criança, alertam os especialistas. A solução par revalorizar o mérito não depende só da escola: passa pela postura dos pais e até pelo jeito de elogiar os filhos
Cada vez mais, e em velocidade crescente, o ingresso de crianças e adolescentes no mundo dos adultos se torna uma corrida de obstáculos: passar por seleções desde a educação infantil, vencer os vestibulares, arrumar um lugar ao sol no mundo do trabalho e nele se manter, especializações, MBAs. São tempos de competição, e disso ninguém tem dúvidas. Mas será que as escolas estão conseguindo preparar os alunos para encontrar um espaço nesse ambiente, que requer bom senso, boa formação e altíssima performance?
Trata-se de uma questão pouco clara tanto para pais como para educadores, mas que começa a vir à tona, estimulada pela publicação de rankings como o da pontuação das escolas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As escolas imprimem um ritmo de muita exigência acadêmica, pressionadas por famílias que esperam da educação um passaporte seguro para o futuro profissional. Ao mesmo tempo, os pais se preocupam em colocar seus filhos prematuramente em ambientes competitivos, o que produz sucesso, mas também tensão e desequilíbrio emocional.
Para especialistas como o psicólogo Yves de la Taille, da Universidade de São Paulo, o caminho para equilibrar esse jogo passa por uma educação que valorize o mérito, que, na visão dele, desapareceu das escolas. Na prática, ensina Yves, trata-se de buscar um modelo de educação que estimule crianças e jovens não apenas a obter a melhor nota - o que pode ser feito por estratégias como a cola - mas a construir, às vezes lentamente, o caminho até o bom resultado e encontrar satisfação nas conquistas. Dessa forma, o estudante pode não ser o primeiro, mas terá se empenhado na caminhada fascinante que os educadores chama de mérito. "Mérito é processo, competição é resultado; na educação, precisamos sempre olhar o resultado em relação ao processo", explica.
O culto ao vencedor
E por onde anda o mérito? Anda meio esquecido em relação ao culto do vencedor, ao qual, segundo Yves, a maioria das escolas vem aderindo. Esse culto põe em evidência o aluno que sempre respondeu bem e, assim, reflete a visão de uma sociedade que valoriza os dons inatos - o que nasce bonito e o que é rico de berço, por exemplo. "É um discurso social que vale para todos, a mídia, a escola e as famílias", alerta o psicólogo. "Todos falam do campeão e ninguém dá importância ao que ele fez para chegar lá." As estratégias de avaliação das escolas não ajudam. Para Ana Aragão, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas, a avaliação escolar não permite conhecer o processo de aprendizagem pelo qual o aluno passou, ou seja, quanto progrediu em relação ao próprio referencial. "Muitas vezes o que ocorre é que a meta do aluno não é aprender, mas se dar bem no processo de avaliação para melhorar sua imagem na escola", diz. Isso iguala alunos que decoraram toda a lição e os que efetivamente aprenderam o conteúdo. Para ela, a avaliação na escola adquiriu um caráter punitivo e de controle quando poderia ser um instrumento de estímulo ao avanço do aluno baseado no que ele já sabe e no que precisa aprender, desenvolvendo também sua autonomia.
Medo da reprovação
"Estabeleceu-se uma falsa polaridade entre diplomar alunos vorazmente competitivos, capazes de sobreviver a desafios como o do vestibular, ou formar cidadãos conscientes, com valores consolidados, mas menos preparados do ponto de vista acadêmico", considera o presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, Arthur Fonseca Filho. Para ele, só agora algumas escolas começam a mudar e a construir projetos pedagógicos que aumentem o grau de exigência, a carga de estudos e a lição de casa - tudo sem abrir mão de trabalhar temas formativos.
Mas como fazer os alunos responderem a esse aperto no ritmo? De acordo com o economista Cláudio de Moura Castro, uma das formas históricas nas famílias de classe média e alta sempre foi o medo da reprovação. Na rede pública, o tema é bem mais complexo. "Nesse caso, precisamos separar duas questões: o efeito da reprovação, que leva frequentemente ao abandono da escola, o que é um desastre, e os problemas gerados pela maneira como a progressão automática foi implantada no Brasil", afirma Claudia Costin, ex vice-presidente da Fundação Victor Civita e atual secretária da Educação do município do Rio de Janeiro. Para ela, do modo como está, a progressão automática - mecanismo que impede por lei que crianças da primeira etapa do ensino fundamental sejam reprovadas - gera acomodação de alunos e professores. "Ela só funciona bem se houver um sistema eficiente de recuperação, com laboratórios de aprendizagem para dificuldades específicas que permitam aos alunos superar as defasagens", explica. Claudia acredita, no entanto, que, como ocorre nos países desenvolvidos, não deve haver reprovação durante os anos de alfabetização por se tratar de um processo em que cada criança tem um ritmo diferente. Encerrada essa etapa, Claudia defende que a reprovação não seja proibida, mas desestimulada, e aconteça depois que tudo tenha sido feito para recuperar a criança. Até porque, apesar da implantação da progressão, o Brasil ainda reprova muito. Segundo um estudo da Unesco divulgado no final de 2008, entre 15 nações, apenas 14 países (sendo 12 africanos) têm taxas de repetência superiores ás do Brasil - e continuamos tendo um dos piores indicadores de aprendizagem.
Na rede particular, embora as taxas de aprovação sejam consideradas mais adequadas, o desafio é fazer com que passar ou não passar do ano deixe de ser o único critério válido para avaliar o desempenho do aluno. Trata-se, na verdade, de educar crianças e jovens que deem valor ao saber e acreditem no esforço como uma forma preciosa de desenvolvimento pessoal.
O mérito e o professor
O desconforto da escola ao lidar com o tema se reflete no próprio tratamento dado aos professores. Na rede pública e privada, a política de remuneração definida nos acordos coletivos impede qualquer diferenciação salarial por mérito. Os professores não recebem conforme a qualidade de seu trabalho, e esse se tornou um tema espinhoso tanto para os formuladores de política pública como para os diretores das escolas privadas. "Melhorar a qualidade de ensino passa por um aumento no grau de exigência e por uma política de incentivo aos bons professores", acredita a educadora Maria Inês Fini, uma das criadoras do Enem. "O incentivo ao mérito do professor é essencial para aprimorar a educação, e isso já foi comprovado em muitos países", acrescenta o economista Samuel Pessoa, pesquisador das relações entre educação e desenvolvimento. Segundo Claudia Costin, já há no Brasil iniciativas positivas em São Paulo, Minas Gerais e no Distrito Federal, onde a escola toda recebe prêmios pela evolução do desempenho dos alunos. Para Claudia, essa é uma estratégia decisiva para estimular a cultura do mérito, mostrando que o esforço e a dedicação devem ser recompensados.
A questão do mérito tem raízes profundas na sociedade. O consultor Robert Wong, um dos principais caçadores de talentos no mundo corporativo brasileiro, identifica na cultura brasileira uma tendência negativa de punir o erro em vez de premiar o acerto. "O reforço positivo é muito mais importante", acredita. Para ele, numa sociedade que valoriza a meritocracia, o que conta é o esforço pessoal. "Não importa se você nasceu inteligente ou bonita, mas o que fez com aquele talento", afirma.
Muitas vezes, o reforço é necessário até mesmo para que o aluno possa simplesmente gostar de estudar, diz Mauro Aguiar, diretor do Colégio Bandeirantes, uma das escolas que mais aprovam nos vestibulares de São Paulo. Segundo ele, costuma ocorrer um efeito perverso de desestímulo aos bons alunos, que recebem a pecha de nerds. "A criança pode deixar de ter orgulho de ser um bom aluno, o que é um absurdo." De acordo com Mauro, as escolas brasileiras erram não apenas ao desconsiderar o mérito mas também ao subestimar o potencial dos alunos. "Não temos vergonha nenhuma de dizer que os nossos têm de estudar muitíssimo, mas levamos críticas de todos os lados."
Formar crianças e jovens automotivados não é um desafio apenas para as escolas: o processo começa em casa. Um erro comum é o elogio fácil ou enganoso: em vez de fazer frequentes referências positivas ao desempenho, os pais também deveriam valorizar o processo. "Pode-se ganhar um campeonato por muitas razões, inclusive pela fraqueza do adversário", considera o psicólogo Yves. Por isso, o principal é relembrar tudo o que foi feito para chegar a uma conquista. "Pais e professores precisam sempre ponderar o êxito em relação ao processo: o resultado dessa soma chama-se mérito", diz.
(texto publicado na revista Claudia nº 2 - ano 48 - fevereiro de 2009
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