quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A era dos extremos - Jennifer Ann Thomas e Raquel Beer, com reportagem de Gabriela Neri


As mudanças climáticas criam um descompasso no planeta. Enquanto em alguns lugares ocorre seca recorde, em outros nunca choveu tanto

Há uma constatação incontornável: o planeta passa por drásticas mudanças climáticas que fazem proliferar cenários extremos, de áreas com secas persistentes a outras com tempestades intensas. Desde o início dos registros históricos, em 1880, a temperatura na Terra subiu 0,85 grau e aumentou a uma taxa de 0,05 grau ao ano na última década. Parece pouco, mas é o suficiente para criar um trágico descompasso no clima global. No Ártico, onde o aquecimento ocorre em ritmo duas vezes maior, o volume de mar congelado diminuiu 80% desde 1979, pondo em risco espécies endêmicas, a exemplo do urso-polar. Condições climáticas improváveis se espalham. No mês passado, enquanto Índia e Paquistão eram alagados por chuvas torrenciais, deixando mais de 400 mortos, a Inglaterra teve o setembro mais seco de sua história, com precipitação equivalente a 20% do total esperado. No Brasil, com suas dimensões continentais, os extremos são sentidos à exaustão. Em São Paulo, o índice de chuvas até agosto ficou 42% mais baixo que o esperado, na maior seca da história do estado. Já o Sul, o Nordeste e o Norte registram recordes de chuvas. Mas, se as anormalidades são inevitáveis, são também inescapáveis suas consequências, a exemplo da falta de água em regiões secas, como São Paulo, e inundações onde chove demais?

O impacto das mudanças climáticas é evidente. No Brasil, é fácil associar o aquecimento global à massa de ar quente e seco que permaneceu por três meses estacionada sobre as regiões Sudeste e Centro-Oeste, dificultando a formação de chuvas. O resultado é o esvaziamento de reservas e o racionamento de água em quase setenta municípios paulistas e mineiros, no que ficou conhecido como o "cinturão da seca". O extremo climático era inevitável, só que previsível. Climatologistas, por meio de projeções matemáticas, já haviam estimado que a região passaria por um intenso período de estiagem nos anos 2010. Diz Susana Kahn, presidente do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas: "Sabemos que as alterações no clima global aumentaram a incidência e a intensidade de eventos extremos, o que terá consequências socioeconômicas, como o racionamento de água e o aumento do preço de alimentos, por problemas na agricultura". Se temos ciência, podemos nos preparar.

Mesmo assim, continuou o desperdício na captação de água, e não se investiu para aprimorar a estrutura precária de distribuição. No Brasil, a cada 10 litros de água limpa retirados de represas para consumo, 4 vazam em encanamentos deteriorados e desvios ilegais ou durante o transporte. Em São Paulo e Minas Gerais, o desperdício é de 3 em 10 - o caso brasileiro mais preocupante é o do Amapá, com mais de 7 litros jogados fora a cada 10 captados. Apenas em 2012, 1 trilhão de litros de água foram perdidos em ligações clandestinas, os "gatos", que afetam a infraestrutura da Sabesp, a companhia de saneamento de São Paulo. Para efeito de comparação, a taxa de desperdício de água limpa é de 15% na Europa, 3% no Japão e se aproxima de zero em países acostumados à estiagem, a exemplo de Israel.

Vêm de fora os bons exemplos de como lidar com secas agudas, e todos envolvem um planejamento adequado da administração pública. A Califórnia, nos Estados Unidos, adaptou-se para enfrentar secas recorrentes - a atual já dura quatro anos. Por efeito das mudanças climáticas e do uso excessivo de sua água pelo homem, o Rio Colorado, o sétimo mais longo do país, que abastece cidades americanas e mexicanas, e que deságua no golfo californiano, teve seu nível reduzido em 40 metros desde 1920 e deve perder mais 10% de seu volume atual nas próximas quatro décadas. Para lidar com a situação trágica, o estado californiano importa água de outras regiões, recicla o que usa e passou a investir na dessalinização de água do oceano. "Só temos água para nossa população porque começamos a nos planejar há vinte anos", pontuou o americano David Sedlak, professor de engenharia mineral da Universidade da Califórnia em Berkeley. Países acostumados às secas se preparam. Singapura, por exemplo, importa 40% de sua água da Malásia, vizinho com recursos hídricos abundantes. Quase 40% do abastecimento potável de israel, que tem 60% de seu território tomado por desertos, é feito por água dessalinizada dentro do país. Em porcentagem deve chegar a 70% até 2050, com mais investimentos em infraestrutura de dessalinização.

Em uma extrapolação, a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), casa de astronautas de várias nacionalidades posicionada a 300 quilômetros de altitude, é exemplo máximo de como se pode adaptar um ambiente para situações radicais. Ela conta com um aparelho capaz de condensar a umidade do ar e transformá-la em água - incluindo o suor de seus residentes. Desde 2010, a ISS possui uma máquina de 250 milhões de dólares, desenvolvida pela Nasa, a agência espacial americana, para reciclar toda sorte de líquido, da água usada para lavar as mãos a moléculas de combustível. Quase a totalidade dos líquidos que circulam pela IS é reutilizada. Sem esse sistema, seria necessário gastar 564 000 dólares ao ano para enviar mais suprimentos à equipe de astronautas. Na estação, a água de torneiras e duchas ainda sai com a metade de pressão comum na Terra. Enquanto no planeta desperdiçamos 100 litros de água em um banho de dez minutos, lá são usados somente 4.

O caso da ISS pode parecer distante, mas é exemplo máximo de como o homem precisa se adaptar a ambientes criados por ele mesmo. Segundo o mais recente relatório do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, é de 95% a probabilidade de o homem ter sido o principal responsável por intensificar as mudanças climáticas que afetam o planeta. Fizemos isso ao emitir, principalmente pela queima de combustíveis fósseis, mais de 375 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial, no século XVIII, aumentando em 40% o que o planeta estava naturalmente acostumado a receber. Isso criou uma redoma de calor ao redor da Terra. A situação piora pela falta de cuidado do homem com um de seus recursos mais valiosos. Por exemplo: um levantamento recente da ONU aponta que 70% do lixo industrial de países subdesenvolvidos é descartado em lagos, rios e oceanos. Utilizamos água limpa sem cuidado, pelo costume de ter acesso em abundância, principalmente no Brasil, que concentra 12% de todos os recursos hídricos do mundo. A situação no planeta só se agravará daqui para a frente. O IPCC estima que a temperatura global deve subir ao menos 1,3 grau até 2100. Em efeito contínuo, tempestades e inundações seriam mais frequentes em áreas que já sofrem com isso, e regiões áridas ou que começaram recentemente a sofrer com secas anormais, a exemplo de São Paulo, teriam os períodos de estiagem intensificados. Resta-nos aprender a lidar com as consequências de nossas atitudes desmedidas.

O paradoxo da Antártica

Uma área do planeta parece imune ao fenômeno do aquecimento global: a Antártica. Nos últimos trinta anos, 95% dos modelos climáticos publicados previam uma drástica diminuição do mar congelado e o aumento de temperaturas na região. O que ocorreu foi surpreendente. No mês passado, o mar congelado da Antártica registrou a maior extensão de sua história, batendo o recorde pelo terceiro ano consecutivo. São mais de 20 milhões de quilômetros quadrados de gelo, ou 6,6% acima da média para o continente. O polo é ponto fora da curva também no quesito temperatura. Lá foi registrada, no ano passado, a temperatura mais baixa já captada pelo homem na Terra, de 94,7 graus negativos.

O comportamento do Polo Sul ainda não é completamente compreendido. A teoria mais aceita para explicar a anomalia diz que o responsável por resfriar a região é, ironicamente, o buraco na camada de ozônio. As emissões de gases estufa no último século destruíram 21,2 milhões de quilômetros quadrados da camada acima da Antártica. Esperava-se que o efeito seria a elevação da temperatura e o derretimento das geleiras. Ocorreu o contrário. O buraco possibilitou que a Antártica refletisse para o espaço o calor irradiado. A falta de ozônio na atmosfera ainda teria aumentado em até 20% os ventos que levam o ar frio do centro do continente para o Mar de Ross, a oeste, onde ocorreu 80% da expansão de área congelada. O El Niño, fenômeno climático que deve se estabelecer até o fim do ano, pode intensificar esses ventos e colaborar ainda mais para o aumento da superfície gelada. Conclui a climatologista Julienne Stroeve, do University College of London: "O Polo Sul está sendo afetado, mas de forma diferente do previsto".




(texto publicado na revista Veja edição 2397 - ano 47 - nº 44 - 29 de outubro de 2014)






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