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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O adeus in (digno) - Leo Passini e William Saad Hossne



Fomos cuidados para nascer, o mesmo cuidado respeitoso necessitamos no momento de partir, mas isso não se coaduna com corte ou abreviação de vida

O adeus in (digno) de Brittany Maynard! Jovem, linda, recém-casada, com sonho de constituir família como tantos outros jovens, inesperadamente descobre o diagnóstico fatal de ser portadora de câncer cerebral incurável (glioblastoma multiforme), em janeiro de 2014. Em abril, os médicos prognosticam em torno de seis meses de vida. Perante uma perspectiva crescente de muita dor, sofrimento e dependência de seus entes queridos, Brittany Maynard toma a decisão de não mais viver e, nesta decisão, tem o irrestrito apoio de seu marido e pais. Muda-se na metade do ano de 2014 com a família, marido e pais, da Califórnia para o estado do Oregon, um dos cinco estados norte-americanos, em que o suicídio assistido é legalizado. Neste estado, ele foi legalizado em 1997. Em 17 anos da existência desta lei (Death with Dignity Act), segundo registros oficiais das autoridades sanitárias, 1.173 pessoas se valeram da lei, solicitando aos médicos receitas de drogas letais para pôr fim à própria existência. Deste total, 752 pacientes ingeriram medicamentos para morrer. Isso significa que um número muito grande de pessoas que obtém de seus médicos a medicação fatal decide finalmente não tomar e opta por outro tipo de final de vida, sendo que um dos mais procurados é a assistência de cuidados paliativos.

Brittany e sua família tiveram a assessoria de uma organização que defende a legalização do suicídio assistido, denominada Compassion and Choices (Compaixão e Escolhas), a qual programou a sua despedida para o dia 1º de novembro de 2014. O vídeo em que Brittany anuncia a decisão de abreviar sua vida, tomando um coquetel de barbitúricos com prescrição médica, teve mais de 10 milhões de visitantes no último mês. A sua história comove os EUA e torna-se um evento mundial, divulgado pelos jornais, rádios e noticíarios de TV.

Um de seus últimos desejos realizados, entre outras viagens a lugares maravilhosos, antes de sua despedida, foi visitar o Grand Canyon, com o seu marido e pais. A foto dessa visita corre o mundo. Deixa registrado na sua página de internet: "Tive a oportunidade de desfrutar meu tempo com as coisas que mais amo na vida, minha família e a natureza". A experiência no entanto não foi totalmente plena e positiva, pois, segundo ela: "É impossível esquecer o câncer". Nesse mesmo texto, Brittany registra o sonho de que todos os que sofrem de doenças terminais possam morrer dignamente da maneira que desejarem.

Após uma leve hesitação quanto à data de sua despedida, ela fala da decisão num vídeo: "Não parece ser o momento adequado. Se chegar o dia 2 de novembro e estiver morta, espero que minha família se sinta orgulhosa de mim e das decisões que tomei. Se chegar o dia 2 de novembro e estiver viva, sei que seguiremos nos movendo como família, sentindo amor entre nós e sabendo que essa decisão chegará mais adiante", diz entre lágrimas a jovem Brittany.

No dia 3 de novembro, a organização Compaixão e Escolhas comunica que a jovem morreu no sábado, 1º de novembro, como tinha planejado: "Com tristeza, anunciamos a morte de uma mulher querida e maravilhosa, Brittany Maynard. Ela morreu em paz, em sua cama, rodeada pela sua família e entes queridos". Brittany deixa a seguinte mensagem de despedida: "Adeus para todos os meus queridos amigos e familiares que tanto amo. Hoje é o dia que escolhi para partir com dignidade em face de minha doença terminal, este terrível câncer cerebral que tirou tanto de mim... Mas que poderia tirar muito mais. O mundo é um lugar maravilhoso, as viagens que fiz me ensinaram tantas coisas, meus amigos próximos e pessoas são os maiores dons. Eu tenho apoio em  torno de minha cama enquanto digito estas palavras... Adeus mundo. Espalhem boa energia. Vale a pena ir adiante".

Ressignificar a vida

Perante a narrativa desses fatos que nos apresentam uma realidade dramática dos últimos dias de vida de Brittany Maynard, surgem alguns sérios questionamentos éticos a respeito do valor da vida humana. Levantamos tão somente alguns. A cultura norte-americana cultua a autonomia e autodeterminação pessoal em altíssimo grau. Não resta dúvida de que são valores importantes ao longo da vida, mas, na sua radicalização, a solidariedade e o cuidado é o que garantiram nossa existência como pessoas até hoje.

A ideologia do autonomismo vai dizer que esta vida, quando marcada pela dependência crescente, dor e sofrimento, necessidade de ser cuidado pelos outros, gerando despesas e custos, não vale a pena ser vivida! É melhor morrer do que viver nesta situação. E quando alguém pede para morrer, no fundo está solicitando uma forma diferente de viver, com mais cuidado e afetividade, melhor controle dos sintomas e dor, bem como o cuidado da espiritualidade.

No caso de Brittany, tudo isso é trabalhado com uma estética cinematográfica perfeita, num verdadeiro melodrama hollywoodiano pela organização Compaixão e Escolhas, que transforma Brittany em "menina propaganda" para a legalização do suicídio assistido. Um drama pessoal é transformado num drama público mundial. A propalada liberdade de escolha, tão preciosa e ciosamente defendida pelos que são pró-suicídio medicamente assistido, estaria sendo preservada neste contexto, sem qualquer tipo de coerção?

Um outro aspecto interessante é o silêncio em torno da possibilidade de ressignificação de vida neste contexto, bem como ausência de toda referência a qualquer tipo de crença religiosa e espiritualidade. Hoje facilmente aqueles que se declaram ateus ou agnósticos são aplaudidos e admirados (por exemplo, os neodarwinianos), mas nem isto é mencionado.

O silêncio em torno da afirmação ou negação de um ser transcendente se choca com as centenas de mensagens de solidariedade enviadas via e-mail para esta jovem, em que estamos diante de manifestações de legítimas expressões de fé, solidariedade e proximidade. Muitos desses solidários manifestantes são pessoas portadoras de câncer em estágio avançado e prestes a se despedir da vida, sem cogitarem em abreviá-la, mas estão determinados a desfrutá-la e degustá-la até o último minuto. Tocamos aqui no coração do mistério de nossa existência humana, em que somos convidados a respeitar a pessoa, embora sem concordar com a sua opção. isto é um imperativo em tempos de pluralismo crescente de nossas sociedades em que convivemos sempre mais com "estranhos morais".

Nossa convicção ética defende que, como fomos cuidados para nascer, o mesmo cuidado respeitoso necessitamos no momento de partir desta vida, quando chegada a nossa hora. Este cuidado respeitoso de partida não se coaduna com corte ou abreviação de vida (eutanásia ou suicídio medicamente assistido) nem muito menos com um prolongamento doloroso do processo do morrer (obstinação terapêutica ou distanásia), mas com a prática da ortotanásia, ou seja, a morte certa, no momento certo, sem abreviações nem prolongamentos desnecessários. É o que os cuidados paliativos proporcionam, cuidado respeitoso integral ao todo da pessoa, nas suas necessidades fundamentais, seja de cunho físico (controle dos sintomas e da dor), psíquico, social e espiritual. Estes elementos é que configurariam para nós o que denominamos se despedir da vida com dignidade e elegância estática.




(texto publicado na revista Família Cristã nº 948 - ano 81 - dezembro de 2014)





















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