sábado, 26 de outubro de 2013

Os problemas da meia-entrada - Ana Luiza Tieghi


Já incorporado à cultura brasileira, o benefício ajuda uma série de distorções, mas uma nova lei tenta ajustá-lo

A presidente Dilma Rousseff sancionou no dia 5 de agosto deste ano o Estatuto da Juventude. Mais do que uma lei para proteção dos jovens, o estatuto mexe com um tema polêmico, o benefício da meia-entrada para estudantes. É a primeira lei federal a abordar a questão, que anteriormente só era encontrada nas legislações municipais e estaduais. Somente o benefício para maiores de 60 anos era assegurado por uma lei federal, no Estatuto do Idoso.

Como os critérios para utilização do benefício dependiam exclusivamente das leis municipais e estaduais, havia discrepância entre como ele era adotado em uma cidade e em outra. Isso pode não parecer um grande problema para os usuários, mas representa uma dificuldade enorme para as empresas organizadoras de eventos.

O Estatuto da Juventude, que entra em vigor a partir de fevereiro de 2014, reafirma a existência da meia-entrada, mas estipula uma cota-limite de 40% para a sua comercialização. O texto também garante que o benefício seja dado aos jovens de baixa renda, mesmo que estes não sejam estudantes.


O benefício hoje

O acesso à cultura é importante para a formação dos jovens e deve ser promovido, mas a  forma como isso é realizado atualmente no Brasil pode não ser a melhor escolha. Benefício típico da cultura brasileira e não encontrado em outras partes do mundo, a meia-entrada entra no cálculo de gastos para a realização de shows e exposições, exibição de peças e filmes, entre outros eventos culturais. São diversas leis que garantem o acesso de estudantes e jovens a essas formas de cultura pela metade do preço, mediante apresentação de uma carteira de identificação estudantil. "A política de meias-entradas é umas das formas de subsídio cruzado que podem ser implantadas pelo poder público. Ou seja, uma das formas de se introduzir artificialmente, pela legislação, uma distorção no preço dos produtos, de modo a beneficiar determinados grupos", explica o advogado e professor da Faculdade de Direito Gustavo Justino de Oliveira.

Porém, essas leis não garantem nenhuma forma de contrapartida governamental para as empresas, que devem então criar modos de oferecer o benefício sem sofrer danos nos lucros. "Percebe-se que não há uma preocupação do legislador em definir quem arca com os custos desses subsídios. É de se questionar se se trata de uma forma do Estado se eximir da responsabilidade, fazendo política com o dinheiro dos particulares. Trata-se de uma forma clara de intervencionismo na autonomia", critica o advogado.

A porcentagem de ingressos vendidos pela metade do preço atualmente é altíssima. Bernardo Amaral, produtor de eventos que já realizou shows de artistas e bandas de renome, como Roberto Carlos, Scorpions, Queen e Bob Dylan, estima que a venda de ingressos pela metade do preço varie entre 65% e 90% do total. Essa situação gera um impacto enorme na receita da bilheteria e acaba retornando ao consumidor.


A pesquisa

Carlos Martinelli, formado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), realizou recentemente seu trabalho de conclusão de curso sobre o tema e chegou a conclusões alarmantes. O que acontece na prática é uma forma de transferência de renda entre quem paga metade e quem paga o ingresso integral, mas de uma maneira desproporcional. São utilizadas duas formas de contornar o problema criado pela meia-entrada. Em ambas as formas, o desconto que o estudante realmente recebe não é a "metade" do valor que seria pago se não existissem vendas de meia-entrada. "O estudante tem que saber disso. Quando ele paga R$ 80,00 em uma meia, provavelmente esse ingresso custaria R$ 100,00. Ele está tendo 20% de desconto efetivo", afirma Martinelli.

Além de um desconto pouco significativo para os estudantes, a atual forma com a qual o benefício se apresenta acaba aumentando demais o valor da entrada integral. Como conta o pesquisador, "o problema é que você não pode simplesmente ir subindo o valor da entrada, porque a cada vez que você sobe o valor em função do desconto, você começa a afastar o público de inteira".

A pesquisa de Martinelli aponta ainda outra saída adotada pelas empresas de entretenimento para viabilizar o benefício: a prática da chamada "meia-entrada para todos". Os produtores dobram o valor do ticket médio, mas criam formas para que praticamente todas as pessoas tenham acesso ao ingresso pela metade. São promoções nas quais doações de alimentos e roupas garantem o preço reduzido, ou qualquer outra ideia que os organizadores tenham para atrair o público e fazer com que ele receba o benefício, mesmo sem ser idoso, jovem ou estudante.

"Outras formas já estão institucionalizadas, por meio de empresas patrocinadoras. Tem uma grande rede de telefonia móvel na qual o cliente que tiver o telefone tem desconto de 50% em uma das maiores redes de cinema de São Paulo", aponta Martinelli. A prática deixa de ser uma questão de justiça social, para facilitar o acesso à cultura por aqueles que não possuem renda suficiente para arcar com seus custos integrais, e passa a ser mais uma estratégia de marketing. "O estudante briga contra qualquer transformação da lei da meia-entrada. Está errado. Ele está recebendo o mesmo benefício que o correntista de um banco ou o cliente da empresa de telefonia, com o agravante de que em geral ele se estende a um acompanhante", afirma o pesquisador.

O orientador da pesquisa e professor da FEA Edgard Cornacchione ressalta: "É um benefício, só que quem tem que colocar a mão no bolso é indiretamente as pessoas que organizam os eventos e diretamente o público. É uma iniciativa do governo que impactou agentes econômicos. Em princípio ela parece uma boa ideia, mas aparentemente há distorções. Hoje se criou uma ilusão, as pessoas estão pagando mais do que pensam".

Por isso é tão importante criar uma discussão sobre a questão. "Se estivesse tudo direitinho, não haveria tanta necessidade de se estimular o debate e estudar esse fenômeno", aponta.


O que muda com o Estatuto

A cota de 40% para comercialização das meias-entradas gerou polêmica em vários setores. Muitos produtores defendem que ela deveria ser mais baixa, restringindo ainda mais a venda dos ingressos pela metade do preço. Já entre os estudantes, a mudança foi vista com desconfiança.

O texto também deixa dúvidas quanto a sua aplicação. Não há certeza sobre o que acontecerá com os ingressos reservados pela cota que eventualmente não forem vendidos. A porcentagem poderá ainda não ser levada à risca e aumentada pelos produtores, caso se perceba que o público que ficou sem o ingresso pela metade não optou por comprar a inteira. Quanto à fiscalização da emissão de carteirinhas e da venda de ingressos, não fica claro quais serão os órgãos responsáveis. "A falta de detalhamento do estatuto no aspecto é eloquente, dando a impressão de que se perpetuará a situação até que ele entre em vigor", afirma o advogado e professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto Rubens Beçak. O novo estatuto irá se sobrepor às leis estaduais e municipais que também tratam da questão da meia-entrada, já que se origina de uma esfera federal. "Havendo regulamentação da matéria pela União através de lei (o que ocorre com o estatuto), esta exclui a aplicação das demais legislações no que com ela colidirem", explica Beçak.

O novo estatuto segue a linha das leis estaduais e municipais ao tratar a questão de forma simplificada. A meia-entrada para eventos culturais foi instituída, mas não se criou qualquer forma de separação entre os tipos de eventos, que possuem uma grande variedade. "São leis simples, de duas, três páginas no máximo, que não criam nenhum tratamento diferenciado entre show nacional e internacional, peças de teatro e sessões de cinema. Por que não criar leis mais específicas em função das faixas de preço, das lotações dos lugares, dos dias da semana?", questiona Martinelli. Essa é uma das principais reclamações da indústria cultural brasileira. Viabilizar a vinda de um artista internacional ao Brasil para várias apresentações, por exemplo, exige um planejamento diferente daquele realizado para um show nacional único. Nos cinemas, existem várias sessões ao longo da semana, então a porcentagem do desconto poderia variar conforme a ocupação da sala e o dia da semana. "Não basta ter um desconto linear. A gente pode ser mais criativo", afirma Cornacchione.


O problema das carteirinhas

O método usado para comprovar que um jovem é estudante e está apto a receber o benefício é visto com desconfiança pelas pessoas envolvidas na indústria cultural. A carteira de identificação estudantil é alvo frequente de falsificações, o que facilita o acesso ao desconto por parte das pessoas que não deveriam recebê-lo. Como o valor da entrada tende a subir conforme a venda de meia-entradas aumenta, ter pessoas fraudando o sistema das carteirinhas só contribui para a alta dos preços - integrais e pela metade.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) perdeu em 2001 o monopólio sobre a emissão das carteirinhas. De lá para cá, toda entidade estudantil passou a emitir o documento, o que causou um descontrole. Cursos de idiomas começaram a emitir carteirinhas, foram criadas promoções nas quais o documento era o chamariz para o público e o benefício teve sua proposta distorcida pelo mercado.

O Estatuto da Juventude tenta resolver esse problema ao afirmar em seu parágrafo segundo que "A CIE (Carteira de Identificação Estudantil) será expedida preferencialmente pela Associação Nacional de Pós-Graduandos, pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas e por entidades estudantis estaduais e municipais a elas filiadas". A carteira deverá conter ainda um selo de segurança personalizado, com padrão único definido pelas entidades mencionadas no parágrafo segundo e distribuído por elas.

Outra mudança diz respeito às modalidades de ensino que poderão emitir carteirinhas. O estatuto afirma que elas serão disponibilizadas apenas pelos modelos educacionais previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em que no artigo 21 consta que a educação escolar é composta pela educação infantil, ensinos fundamental e médio e educação superior. Excluem-se dessa forma os cursos de línguas e outras modalidades de ensino, restringindo a atual mercantilização do benefício. Desse modo, espera-se que haja uma certeza maior de que a pessoa que utiliza o documento é realmente estudante.


Possíveis soluções

Mas o Estatuto da Juventude ainda está longe de resolver todos os problemas decorrentes da atual política de meia-entrada. "A falha é do próprio sistema. Como não existe contrapartida, o benefício é viabilizado por meio de transferência de renda, você vai subindo o valor da inteira de forma que o sobrepreço subsidie o da meia-entrada. Mas isso é um beco sem saída, porque quanto maior a adesão de ingressos pela metade, menor vai ser o desconto efetivo", aponta Martinelli.

Uma saída é criar legislações mais detalhadas para a questão, levando em conta a idade e a renda do beneficiado, além do tipo de evento, periodicidade, capacidade de lotação, horário e dia da semana, entre outros aspectos que são importantes na hora de precificar um evento. "Se eu dou muita concessão, eu prejudico o próprio planejamento financeiro e torno pouco atraente a expansão da cultura no Brasil. Os produtores não sabem como será a distribuição dos valores, o maior problema é a incerteza", explica o professor da FEA.

A cota delimitada pela lei federal é uma melhoria, mas ainda há muito para ser feito. "O percentual é um avanço. Nós vamos caminhar daqui para frente para ter um acesso mais apropriado de determinadas partes da sociedade", acredita Cornacchione. O produtor Bernardo Amaral compartilha da opinião de que a cota de 40% irá propiciar uma redução no preço dos ingressos: "Os valores irão cair proporcionalmente à queda do ticket médio. Acredito que reduzirão entre 25% e 35%".

"Se você criar uma cota-limite, rever os critérios e dar liberdade para o promotor do show determinar em quais setores ele vai dar a meia-entrada, aí eu acredito que de fato ela comece a ter um desconto efetivo maior. Existem alterações possíveis. O que precisa é dialogar", finaliza Martinelli.



(texto publicado na revista Espaço Aberto nº 154 - outubro 2013)














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