sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A gente não quer só trabalho - Jéssica Martineli


Ele pode dar o sustento do dia a dia, o sentido para a vida ou equilibrar as jornadas. O trabalho significa muitas coisas e só você pode saber qual o papel dele em sua existência

Bruna Flores era aquele tipo de criança que, desde pequena, sabia o que ia ser quando crescesse. "Tinha o sonho de ser uma grande repórter, correspondente internacional, e explorar o mundo pela profissão", conta a gaúcha de 29 anos. Aos 9, já era apresentadora mirim do Jornal do Almoço, em Erechim, no Rio Grande do Sul, e fazia o jornal da escola. Na hora do vestibular, claro, entrou na faculdade de jornalismo.

E foi lá, entre uma aula e outra, que Bruna percebeu que podia estar errada. "Quando os professores falavam sobre a rotina profissional, que seríamos 'jornalistas 24 horas', eu desconfiava que, no fundo, não era bem isso que eu queria", diz. Formou-se e, em 2006, apresentando um programa jovem em uma grande emissora de televisão de Florianópolis, vivia uma rotina sem horários fixos, com salário baixo e sem um plano de carreira. Teve a certeza de que o jornalismo não era a profissão que tanto queria. "Vi que o sonho de ir para a TV não era o que pensava. Não queria quilo para o futuro", conta. Na época , com casamento marcado e planos de ter filhos, ela desejava um trabalho que lhe desse estabilidade para viver o dia a dia em família. "Fui amadurecendo e percebi que meu sonho de vida era mais prático: uma boa casa, alguém para dividir a vida comigo, filhos e um salário que me garantisse viver bem", diz.

Foi assim que, em 2006, dois anos depois de formada em jornalismo, Bruna tornou-se não uma apresentadora de sucesso, mas uma funcionária pública, caixa de um banco. Optou pela mesma profissão de seu pai e abandonou sem remorsos a carreira que prometia ser cheia de glamour. Para ela, isso significou uma vida tranquila perto do marido e dos filhos. "Descobri que existe vida fora da profissão. Que eu posso trabalhar seis horas do dia e aproveitar as outras dezoito para mim. Tive dois filhos, aprendi a cozinhar, faço academia", conta. Casada há quatro anos, Bruna é mãe de Sofia, de 3 anos, e Caetano de 1. O bom salário permitiu que ela e o marido, músico, pudessem comprar uma casa e viver sem preocupações. "Vivo uma rotina sem grandes emoções jornalísticas, mas que, para mim, é perfeita. Recebemos amigos, vemos filmes e curtimos as crianças. Se eu trabalhasse na TV provavelmente não teria filhos, por causa do dia a dia maluco. Para manter o bem-estar da família, eu preciso de dinheiro, e é para isso que serve meu trabalho. Mas não é ele que me satisfaz". É nos prazeres simples do cotidiano familiar que Bruna se realiza.


Trabalhar é viver

Bruna escolheu um serviço que lhe deu segurança e paz para ficar com quem ama. Sua opção mostra que não é preciso viver para trabalhar, um problema generalizado hoje em dia. "Precisamos rever a vida vivida para o trabalho", aponta Lívia Moraes, professora de sociologia do trabalho da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Vale a pena batalhar tanto, chegar em casa exausto e não poder aproveitar os frutos desse esforço?", pergunta. A questão, que martela muitas cabeças, na verdade é consequência da reflexão fundamental: afinal, para que você trabalha?

Pelo dinheiro no fim do mês, é claro. Mas não só. Trabalhar é uma necessidade humana - com diferentes significados em cada época da história. Colher um alimento para comer ou construir uma ferramenta de caça já eram trabalhos. Por ter essa característica original de uso de força física, na Antiguidade gregos e romanos achavam ter emprego um ultraje - tanto que a palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura. A dignidade estava em se libertar do peso da sobrevivência para se dedicar a questões elevadas, como atividades intelectuais. Trabalhar, na época, era coisa para escravos.

A Reforma Protestante, no século 16, mudou um pouco essa perspectiva. A visão religiosa encontrava no trabalho um modo de cansar o corpo, que, assim, ficava sem tempo para tentações - vem daí a ideia de que o trabalho dignifica o homem. Mas foi só a Revolução Industrial, tempos depois, que começou a dar ao nosso dia a dia profissional sua atual característica positiva. O capitalismo mostrou que, por meio de atividades remuneradas, podemos conquistar coisas e nos destacar entre as pessoas. Para completar, o fim do século 20 chegou dizendo que esse mesmo trabalho que nos oferece poder de consumo também deveria trazer felicidade. Afinal, se vamos nos dedicar tanto a uma ocupação, é justo que busquemos nela uma motivação mais afetiva - ou seja, um propósito maior que só pagar contas.

Esse sentido, que vem fazendo muita gente repensar sua relação com o ofício, pode ser ter mais tempo para a família - como aconteceu com a Bruna. Como pode ser usar um talento naquilo que se ama fazer, construir algo que se torne um legado... Qualquer que seja o propósito, o trabalho deixou de ser apenas uma função prática para tornar-se parte do sentido que damos à própria vida - ou, ao menos, é isso que estamos buscando. Não significa trabalhar menos. Apenas que os sacrifícios e problemas são diminuídos diante da perspectiva de encontrar, na labuta de todos os dias, a nossa realização.


Trabalhar é amar

Pensando no que daria significado à sua vida, Raner Pacheco da Silva, de 35 anos, decidiu sua profissão. Adolescente, o mineiro de Belo Horizonte acompanhava a carreira da irmã mais velha, enfermeira. "Tinha curiosidade, interesse e me identificava com o valor que faz a enfermagem: o altruísmo", diz. 

No entanto, temendo enfrentar as dificuldades que a irmã vivenciava - remuneração baixa, pouco reconhecimento, longos dias de trabalho e a crença de que enfermagem é uma atividade feminina -, Raner prestou vestibular para direito. Reprovou por décimos e viu nisso um sinal para seguir o sonho de ser enfermeiro. Entrou na faculdade e, ao se formar, em 2004, já trabalhava em uma clínica, prestando atendimento a idosos e ajudando no bem-estar das pessoas. Pouco depois, começou também em um hospital, onde as oito horas de trabalho eram intensas: acompanhava os médicos, fazia escalas, prestava primeiros socorros em pacientes baleados, esfaqueados e com grandes traumas. "No início, tinha medo, mas estudei muito e me saí bem. Preciso ter conhecimento de várias áreas da saúde, noções de fisioterapia, psicologia, assistência social. E ser criativo para aliviar os problemas do paciente", relembra.

Nessa época, o enfermeiro também conseguiu realizar um de seus grandes desejos: atuar no programa Saúde da Família, fazendo um trabalho preventivo em comunidades carentes. Assim, Raner está nas duas pontas da saúde: atenua a dor dos pacientes e também ajuda a evitá-la do princípio. "Seja num hospital, seja num posto médico, o enfermeiro é o primeiro a aparecer, na prevenção ou na cura. Nosso trabalho são também o cuidado e o apoio psicológico aos doentes e sua família", conta.

Essa atenção e vontade de ajudar os outros são o que dá sentido os dias do enfermeiro. Quando fala de seu cotidiano nos corredores de hospitais, ele menciona com carinho quem passou por seus cuidados. Lembra-se de uma história marcante, há cerca de cinco anos, quando recebeu um cumprimento sincero do marido de uma senhora que havia acabado de falecer. "Ele segurou minha mão e me agradeceu por meus esforços em tentar salvá-la. É esse reconhecimento que faz tudo valer a pena", comenta.

Quase dez anos depois de formado, casado e prestes a ter o primeiro filho, Raner mantém fresca a paixão pelo trabalho. Tem dois empregos - no hospital e no Conselho Regional de Enfermagem - e passa facilmente mais de dez horas dedicado à profissão. "Todos nós procuramos saber o porquê da existência. Na enfermagem tenho essa resposta", diz.


Trabalhar é escolher

O mineiro sabe o valor do seu trabalho e é por isso que consegue extrair de suas duras jornadas não só felicidade, mas sentido para cada uma de suas ações profissionais. "Encontrar a satisfação a partir do trabalho depende de autoconhecimento, de saber o que te dá prazer", afirma a professora Yvette Piha Lehman, do departamento de psicologia social e do trabalho da Universidade de São Paulo (USP).

Para a especialista, trabalhar é o eixo que nos dá autonomia. Porém, nossa relação com o trabalho jamais será satisfatória enquanto não encontrarmos um sentido para realizá-lo. A novidade é que, hoje, podemos escolher qual será esse significado. Trabalhar pode ter sentidos tão diferentes quanto ser a atividade que nos oferece recursos materiais, que define a identidade ou que nos traz felicidade, entre muitas outras opções. E se, há poucos anos, esse serviço era como um casamento, mantido por toda a vida, agora vivemos mais tempo, com mais saúde, e ganhamos a alternativa de não manter esse compromisso para sempre. Temos a liberdade de fazer várias escolhas profissionais, que tenham a ver conosco durante as etapas da vida.


Trabalhar é ter equilíbrio

Com apenas 33 anos, Daniela Venturi de Abreu tem um currículo impressionante. A paulistana formou-se em publicidade, trabalhou como chef de cozinha e hoje é professora de ensino infantil. No decorrer da vida, realizou-se em cada uma de suas profissões e aprendeu a dar ao trabalho o lugar certo em seus dias.

Ela começou aos 17 anos, na publicidade. Mas, experimentando a carreira ainda nos tempos de faculdade, percebeu que seu futuro não estava nas propagandas. Revendo seus interesses, lembrou que era apaixonada por culinária desde criança. Aceitou um estágio em um restaurante onde, de cortar cebolas a preparar pratos, fazia de tudo. "Gosto muito de trabalhar com a comida, aprendendo de tudo um pouco", diz a paulistana. Em 2001, formou-se em publicidade, mas foi no restaurante que encontrou satisfação. "Queria aprender mais e adorava o clima de companheirismo da equipe na cozinha", conta.

Passou pela cozinha experimental de um site, testou receitas e escreveu sobre gastronomia, esteve à frente de fogões de restaurantes e da rotisseria de uma rede de supermercados. De pratos à produção de eventos, mergulhou na área gastronômica. E, em seis anos dedicada aos alimentos, foi se cansando da rotina. "No início trabalhava no almoço, voltava para casa e retornava para o jantar. Trabalhava aos fins de semana e tinha folga nas segundas. O ritmo era intenso e fui perdendo o pique", diz.

Ainda estava apaixonada por culinária, mas viu que não queria mais passar tanto tempo dentro da cozinha. Decidiu voltar a estudar. Entre as carreiras que um dia havia cogitado estava a pedagogia. Foi nela que apostou. Começou a fazer estágio e não saiu mais da sala de aula. "Amo ensinar. Não acho um problema corrigir provas ou fazer relatórios. Sou muito feliz fazendo tudo isso", conta. Até hoje está na mesma escola em que começou, lecionando matemática, português e ciências para crianças de 10 anos.

Já se passaram outros seis anos desde que Daniela começou a dar aulas. Além de ter prazer no que faz, percebeu ter encontrado um equilíbrio entre o trabalho e as outras atividades a que se dedica. "Meu trabalho me ajuda a ter uma rotina. É o que me sustenta e o que gosto de fazer. Adoro ir à escola todos os dias, mas também amo ter os fins de semana, minhas férias, sem ânsia de voltar", diz.

No futuro, Daniela ainda se vê dando aulas, mas planos nunca foram uma obrigação para ela. "Quando me perguntam quais são minhas expectativas, nunca sei o que responder. Não é falta de ambição. Acho, de verdade, que as coisas vão acontecendo. Se tivesse de correr atrás de um cargo e um salário maior, seria muito desgastante. O trabalho para mim é prazer. Mas o restante da vida também é importante", acrescenta. As reflexões vêm de sua longa busca por encontrar a posição que o trabalho ocupa em sua vida. "Parece que de alguma forma temos de seguir o script 'sair da escola, passar no vestibular, fazer faculdade, estágio e trabalhar'. É como se fosse a receita da felicidade. E não é", comenta.

Afinal, somente nós podemos achar o sentido das horas remuneradas em nossos dias. Precisamos do trabalho, não há dúvida: mas, o que ele significa para nós só descobrimos por meio de nossas experiências e valores. "Se há uma felicidade possível no trabalho, ela depende de que essa atividade seja a fonte de satisfação, e não um mero meio para obter recursos para satisfações posteriores", afirma Adriano Correia, diretor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás.

Foi assim que Daniela entendeu que seu trabalho é fonte de prazer e equilíbrio entre seus interesses, Raner sabe que tratar os pacientes é a missão que dá sentido a sua vida e Bruna encontra no serviço a estabilidade para ter a família com a qual sempre sonhou. Cada um deles atribui diferentes papéis e sentidos à profissão que escolheram. Assim como eles, encontrando o significado que o trabalho ocupa em nossa trajetória, podemos levar os dias úteis com dedicação - mas fazendo deles um espaço pleno e equilibrado, com satisfação e felicidade.




(texto publicado na revista Sorria para ser feliz nº 34)














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