quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Reconhecendo e integrando a sombra - Lázaro Freire (psicanalista, filósofo e terapeuta de orientação junguiana)


Sombra, na Psicologia Analítica, é um belo conceito relacionado ao inconsciente. Presente também em grupos ocultistas sérios, há várias analogias com aquilo que tentamos negar em nós. Sua compreensão também é fundamental para uma boa interpretação das mensagens presentes nos sonhos.

Porém, mesmo como metáfora, não podemos confundir esta sombra (junguiana ou iniciática) com trevas (conscienciais). Sombra, no contexto definido por Carl Gustav Jung, é um conceito, um arquétipo do inconsciente. Não justifica as desculpas para diversos atos trevosos ou "cultos" de baixíssima sintonia, que muitos (pseudo) ocultistas dão.

Na cultura pop há um bom exemplo deste conceito: A metáfora do Smith, sombra junguiana do personagem Neo, do filme Matrix. Combatido em vão, ele se multiplica, ao mesmo tempo em que Neo não compreende a sinceridade da Sombra que diz ser ele mesmo. Enquanto não compreendido e incorporado, é enfrentado de forma dolorosa, podendo até contaminar toda a representação interior.

Na verdade, como ocorre com qualquer presença arquetípica, inerente ao inconsciente humano, o conceito está presente em várias outras obras. Em Peter Pan, ela se destaca da personalidade aparente, e precisa ser integrada, recosturada. E no clássico O médico e o monstro, a Sombra é a temática central.

E o próprio mito de Diabo, Lúcifer ou Satanás dos cristãos, na verdade, não passa da cristalização em um ser semingelical da própria sombra psíquica da sociedade medieval. Um ícone de tudo aquilo que já trazíamos em nós, mas preferíamos, devido à aculturação, mantermos tão longe quanto isolável, embora tão perto quanto "controlável". Daí a necessidade de evangélicos falarem mais da sombra diabólica do que de Deus. É necessário manter a projeção próxima, para sentirmos que a combatemos e que ela não faz parte de nós.

Reconhecer a sombra interior não significa cultuar trevas, nem tampouco ir contra a evolução. Aliás, muito pelo contrário: A questão não é passar a sermos obscuros, como se o ego e o pouco que já conhecemos sobre nós mesmos fosse excluído de tudo o que se é; e sim reconhecer e trabalhar aquilo que já somos, que já nos influencia, que vem de nós mesmos e não de obsessor. Aquilo que não queremos reconhecer, por acharmos que é feio ou mal, devido a algum valor social.


Hipocrisia e negação

Ninguém está sugerindo desenvolvermos um lado trevoso e antievolutivo para nossa sombra. Não estamos, com isso, falando em ter aversão à luminosidade, fazermos o "mal', nem abrirmos mão de valores éticos e sociais. E muito menos trocarmos referências espirituais integradoras pelo culto ao inconsciente e negado. O difícil e necessário é encararmos aquilo que já temos e sequer sabemos que temos, e que, não raro, avolumou-se em "nossos porões" e não queremos visitar. Reconhecer isso como parte de nós e, centrar, tem muito a ver com evoluir.

Por outro lado, a religiosidade estereotipada que cultua o "bonzinho" atrapalha: negando, um hora "explode". E, então, não adianta culpar o "obsessor", dizer que "estávamos fora de nós mesmos", ou rezarmos para ver "se passa". É nessa hora que se revelam o padre pedófilo, o yogue que tem crises destrutivas de mal humor, o palestrante espírita que fala manso com seus "diletos irmãos da seara de Jesus", mas é um terror em casa e temido pelos filhos; é nesse momento que a pessoa aparentemente bem educada desconta no primeiro comerciante que encontrar; que namorada "tão meiga" e de família incontrolavelmente ataca justamente quem ela dizia amar...

A questão é que antes disso tudo se apresentar em neuroses, temos diversas pistas: essa Sombra, enquanto vai crescendo, aparece em sonhos e projeções astrais, nos "perseguindo" ou nos fazendo ter contato com o "mal" ou com o "sujo". Podem ser figuras atrás de você, monstros medievais, bichos feios que querem te pegar, dráculas, incubus, súcubus, coisas gosmentas...

Muitos, ao trabalharem a Sombra, vão achar que passaram a noite fazendo projeção astral assistencialista no umbral. Mas o "obsessor" pode estar muito mais próximo, e o primeiro "umbral" pode ser o seu interior!

Em todo caso, a própria projeção no umbral ou mesmo o assédio espiritual já podem ser formas da vida lhe colocar em contato com aspectos sombrios, em contraponto.

Ou seja, é muito verdade a velha expressão de "quanto mais rezo, mais assombração me aparece".

Trabalho de assistência social é ótimo e incentivamos, mas notem que quanto mais "bonzinho" o projetor astral, quanto mais negar conteúdos que já traz em si, mais vai se projetar (mesmo) no umbral; pelo mesmo motivo que pessoas deprimidas têm um excesso de sonhos e "projeções" em cenários belíssimos, que compensem psiquicamente a balança por tudo o que não estão vivendo aqui.

Do mesmo modo, explicando pela ótica espiritualista, uma pessoa com sombra enorme atrairá os obsessores de verdade, em sintonia, os quais, por sua vez,  a levarão a umbrais mais palpáveis. No fundo, tudo é um só. Até mesmo quando o obsessor é um (a) chefe ou um (a) "ex" materializados aqui!

Robert Johnson, popularizador junguiano, autor da série He/She/We, possui também um ótimo livro sobre o conceito, chamado Magia Interior. É uma leitura leve e rápida, porém, capaz de mudar nossa autocompreensão. Recomendo! Johnson fala em uma balança, que não deve pesar demais para um lado só, sob risco de ...quebrar. E o que se quebra, na psique, somos nós!

Neste sentido, lembro também de uma frase de Jesus dizendo: "Ai de vós, hipócritas! Por que lavam o exterior do corpo, que por dentro está imundo?" Certamente o mestre dos cristãos não estava recomendando sujarem o lado de dentro do tal corpo, nem fechar os olhos para a sujeira que já estava ali. Jesus nunca foi conivente com esta grande Sombra psíquica que religiões criaram na hipocrisia do "ser bom". Ao contrário; ele era um grande questionador, sempre crítico às religiões de seu tempo, e sabia ser duro mesmo quando isso implicava em desafiar o esperado pela convenção social. Que os cristãos reflitam: Jesus era bom em si, como estado de consciência, mas jamais recomendaria aos seus seguidores essa pseudo bondade estereotipada luminosa - e hipócrita - que "doutores" da lei implementaram em seu nome, em tantas dioceses e federações, e que, infelizmente, explica "sombriamente" as distorções que minam as instituições em seu nome, embora não precisem macular a própria mensagem evolutiva de Jesus.

Em tempo: Jung considerava o Cristianismo como simbolicamente adequado para a expressão do homem ocidental atual. Mas é bom lembrar de que falamos da simbologia original, e que o neojunguiano Robert Johnson nos adverte que a pior coisa que fizeram com o Cristianismo - simbólica e psiquicamente - foi convertê-lo em um culto pseudo luminoso, de mesas brancas ou paredes límpidas, onde não há mais espaço para as imagens sombrias de outrora, que ritualizavam a comunhão com "Cristo" como um caminho espiritual que metaforizava o encontro e casamento alquímico que fazemos dentro de nós.



(texto publicado na revista Caminho Espiritual nº 27)




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