quinta-feira, 24 de maio de 2018

Estamos ficando doentes de tanto comer bem ? - Silvia Lisboa


A obsessão por comer apenas alimentos saudáveis tem um nome: ORTOREXIA. Saiba como esse transtorno se instala e por que a comida é muito mais que um punhado de nutrientes

Dos 14 aos 16 anos, Anna Júlia Moll comeu frango,  batata-doce e brócolis em todas as refeições. Mais precisamente, 100 g de frango e 40 g de batata-doce e brócolis, pesados numa balança. A carne era temperada apenas com limão, alho e cebola e grelhada numa panela antiaderente sem sal ou óleo. Tudo era preparado pela estudante, moradora de Cachoeirinha, região metropolitana de Porto Alegre. "Eu não deixava minha mãe fazer porque tinha medo que ela colocasse azeite ou algo que pudesse 'estragar' a comida", conta Anna, hoje com 20 anos. Ela lia as novidades da ciência e sabia que o sal causava "retenção hídrica" e a deixava inchada, e o azeite era culpado pela gordura. "Tudo o que era gordura era ruim. Ponto", explicou.

Um dia ela decidiu que não voltaria a comer doces e laticínios. O açúcar era um veneno conhecido, e os derivados do leite tinham um efeito semelhante ao do sal: causavam inchaços indesejados para sua meta de estar em dia com a saúde e a silhueta. Mas, para se convencer mesmo a não ingerir mais nada de iogurte ou brigadeiro, colocou na cabeça que sofria de diabetes e intolerância à lactose, apesar de não ter nenhum sintoma das duas doenças. Se tivesse muita vontade de comer algo da lista proibida, cheirava o prato até a vontade passar. Funcionava.

A mania de comer só o que faz bem à saúde e demonizar certos ingredientes é conhecida por parte da comunidade médica como ortorexia nervosa. A desordem ainda não faz parte do DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a Bíblia da Psiquiatria, o que significa que ainda não há protocolos para diagnosticar e tratar a ortorexia. Mas especialistas acreditam estar diante de uma nova faceta de um transtorno alimentar que começou com a cultura da geração saúde.

O termo foi cunhado pelo médico norte-americano Steven Bratman em 1996 e vem das palavras gregas orthos, que significa certo, e orexis, apetite. Na época, Bratman não tinha intenção de nomear um novo distúrbio, mas preocupava-se com o comportamento peculiar de um grupo de pacientes que chegavam ao seu consultório de medicina alternativa perguntando o que podiam cortar da dieta.

"Era mais como um movimento de contracultura", escreveu, por e-mail. Mais de 20 anos depois, o fenômeno ganhou proporções epidêmicas. "Hoje, a ortorexia é totalmente mainstream", disse Bratman. Estima-se que em torno de 1% da população mundial sofra dessa fixação em se alimentar de forma correta, de acordo com um estudo da University of Northern Colorado, dos Estados Unidos, publicado neste ano. Em números absolutos, é um contingente de 70 milhões de pessoas. Entre certos grupos, como atletas, modelos e estudantes da área de saúde, o risco é bem mais alto.

Uma pesquisa feita na Universidade de Taubaté, interior de São Paulo, com 150 alunas do curso de Nutrição revelou um índice alarmante: 88,7% delas tinham risco de desenvolver comportamento ortoréxico. No experimento, as pesquisadoras Quetsia de Souza e Alexandra Rodrigues mediram o Índice de Massa Corporal (IMC) das participantes e aplicaram testes que avaliavam o nível de distorção da imagem corporal e o risco para desenvolver o distúrbio.

Entre blogueiros fitness e seus seguidores, os números também são altos, segundo a nutróloga Maria del Rosário, coordenadora do Departamento de Transtornos do Comportamento Alimentar da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran): "Esse tipo de publicação chama pessoas com propensão a desenvolver transtornos alimentares."

Preocupada com a explosão do fenômeno, a Abran criou oficinas para treinar médicos de diferentes especialidades para identificar, o mais cedo possível, casos em que a preocupação com alimentação saudável tenha se transformado num comportamento obsessivo. Como outras desordens psiquiátricas, os distúrbios alimentares se manifestam de forma misturada. A anorexia, por exemplo, pode ter padrões ortoréxicos: a pessoa restringe a alimentação a alimentos saudáveis e com baixas calorias para perder peso. Em geral, a distorção da imagem corporal acompanha o quadro. Bratman alerta que esses seriam os casos mais graves.

É o que parece ter acometido a estudante de Nutrição Anna Júlia Moll. Ela nunca foi diagnosticada por um profissional, mas, durante uma aula sobre transtornos alimentares, viu-se descrita. Quando aprendi sobre a ortorexia na faculdade, me reconheci em tudo", lembra. No período de um ano e meio em que se limitou a uma dieta à base de frango, legumes, sem laticínios ou doces, Anna perdeu 36 kg e chegou aos 50 kg distribuídos pelos 1,66 metro. A obsessão com comida influiu até na escolha do curso universitário, a Nutrição. "Na ortorexia, o pensamentos sobre alimentos saudáveis se torna o tema central em todos os momentos do dia, descreve Bratman.

Distúrbio aceito

Identificar a ortorexia não é fácil. Em um mundo atolado de pizza e lasanha congelada, dar preferência a alimentos frescos e sem aditivos é algo bem-visto e até invejado por quem não consegue dar tanta atenção ao que põe na boca. Isso explica o sucesso dos perfis fitness no Instagram. Nutricionistas viraram celebridades nas redes sociais com dicas de como pesar as refeições ou comer batata-doce antes de ir para a academia.

A própria ciência - e a divulgação feita pelo jornalismo - também tem sua parcela de culpa. Cada dia sai um novo estudo sobre comida, ora demonizando, ora celebrando determinado alimento.


(texto publicado na revista Galileu edição 312 - julho de 2017)

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