domingo, 13 de janeiro de 2013

Harmonia dá trabalho - Denise Fraga


Quem de nós nunca mentiu, teve raiva, ciúme, inveja, desprezo e até vontade de bater em alguém ? Não é o caso, claro, de soltar a corda e sair desfilando nossos instintos selvagens por aí, mas também não dá para fazer de conta de que não somos cheios de imperfeições. Qual é a saída ?

Fui uma menina boazinha. Era obediente e tirava boas notas. Eu me lembro bem de uma palavra que minhas tias usavam quando se referiam a mim: meiguinha. "Ela é tão meiguinha!" Eu era bem pequena e já não sabia se tomava aquilo só como elogio. Acho que não gostava de ser meiguinha. Não me parecia completamente bom. Além disso, viviam me perguntando por que eu estava chorando. "Não tô chorando" - eu dizia. Eu tinha cara de choro. Quando vejo fotos de minha infância, entendo o porquê. Meus olhos grandes e minhas olheiras já estavam lá e, no meu rostinho de menina, faziam uma cara de tragédia de dar pena. Mesmo que estivesse brincando em pura euforia, meu rosto exibia meiguice e melancolia. Perfeito para uma menina boazinha.

Estudava em um colégio tradicional do Rio de Janeiro onde tinha aulas de religião. Não era uma escola religiosa, mas tínhamos aulas de religião, leia-se católica, com uma freira. Eu adorava a irmã Ângela. Ela me fazia crer que era bom ser meiguinha. Um dia, me emprestou um livro. A Vida de Santa Odetinha. Era uma santa criança. Santa Odetinha tinha morrido menina e foi canonizada. O tempo passava e eu não lia o livro. Irmã Ângela me perguntava se eu estava gostando e eu dizia que sim, mas ficava com muita preguiça de começar. Acabei por devolver o livro sem ler. "Gostou?" "Muito. Eu tinha exatos 11 anos. Nesse dia, em sua aula, a irmã desfiou o rosário a respeito da mentira. Como era terrível mentir, como devíamos sempre nos esforçar para falar a verdade, que nada é melhor que a verdade, a alma limpa etc. e tal. Vesti a carapuça e fui me encolhendo num canto. Parecia que ela dizia tudo aquilo pra mim. No fim da aula, tomei coragem. Se era melhor falar a verdade, precisava dizer que tinha mentido. Eu me lembro como se fosse ontem. Minhas lágrimas pingavam em seu ombro, enquanto eu mexia na gola xadrez do seu vestido. "Eu menti, irmã. Eu não li o Santa Odetinha." Vi o ódio nos olhos da freira. "Por que você fez isso, minha filha?" Eu não conseguia mais falar, só chorava. Não sabia dizer por que não li, tampouco por que menti. Só tinha a certeza de que tinha mentido para não vê-la com a cara que ela estava naquela hora. Saí de lá com os olhos vermelhos e a conclusão de que a verdade tinha sido pior do que a mentira. E de que eu não era tão meiguinha assim.

O tempo passou e, apesar da história, permaneci mais adepta às verdades do que às mentiras. Até por questão de conforto. Cada vez que precisava mentir, sinto minhas orelhas esquentarem e acho que todos estão percebendo a vermelhidão. Talvez minha profissão ja dê conta de boa parte das mentiras que cabem em minha vida. Mesmo assim, como qualquer mortal, minto de vez em quando. "Por que você não foi no meu aniversário?" "Porque eu estava com preguiça." Ninguém gosta de ouvir isso. Falo sempre pros meus filhos que a mentira só vale quando a intenção é não deixar alguém triste. Vejo muita gente que, em nome da franqueza, sai por aí perdendo a gentileza e a educação. Mas, várias vezes em minha vida, pensei na história da irmã Ângela. Dizia para não mentirmos, mas me deu uma bronca enorme quando eu falei a verdade ao dizer que tinha mentido. Pensava quantas vezes uma pobre freira precisa mentir para manter suas circunstâncias impossíveis. E quantas verdades sobre suas mentiras irmã Ângela deve ter desistido de dizer. O paradoxo que vivi aos 11 anos nos faz refletir até hoje. Como negamos o que é humano ? Como temos pouca compreensão de nós. Acho que Compreensão da Imperfeição Human devia ser matéria obrigatória do ensino fundamental. Seria um ensino delicado, é óbvio, pois tudo o que queremos é a certeza de ser aceitos mesmo que imperfeitos. Por incrível que pareça, não dá para legitimar o humano. Soltar a corda e sair por aí desfilando nossos instintos selvagens ao nosso bel prazer seria bem desagradável e muito pouco funcional. Mas um pouco de estudo para o autoconhecimento, para entender a psique, as funções cerebrais, um tanto de astrologia ou qualquer outra coisa que nos ajudasse a compreender mais praticamente o que pertence à nossa condição de Homo sapiens neste planeta, seria de grande serventia. No mínimo, não julgaríamos tanto. Como dizia minha avó, não jogaríamos tanta pedra no alheio reconhecendo nossos telhados de vidro. Saberíamos brigar de mãos dadas.

Sempre tive aflição dessas cenas de novela em que a mocinha nervosa sai quebrando tudo. Sempre achei exagerado. Minha alma libriana treme de cima a baixo quando vejo pratos voando. Mas, certa vez, precisei fazer um filme onde eu representava o papel de uma mãe de adolescente em plena separação. Colocando as compras na geladeira, deixava um ovo cair no chão e, a partir disso, começava a jogar todos os ovos contra a parede da cozinha. Quando li a cena, tremi. Ao fazê-la, delirei de prazer. Santa profissão a minha! É claro que não posso sair fazendo o mesmo aqui em casa. Perder o controle pode ser muito bom para quem desabafa, mas é extremamente desagradável para quem está à nossa volta. E é por isso que cada um de nós tem dentro de si uma represa. Maior ou menor de acordo com personalidades e capacidades, mas cada um de nós tem seu lago de chiliques represados. É natural que seja assim. Vivemos em sociedade. Mas o que é realmente curioso é que, na hora que alguém não aguenta e abre a comporta, todos ajam, como se aquilo fosse uma coisa absurda, que ninguém conhece. Todos se esquecem de suas represas e saem ao ataque do alheio clamando por harmonia. Mas é natural. É tudo natural. Como disse o sábio Terêncio: "Nada do que é humano me surpreende". O chilique e a crítica ao chilique. Quando acontecem em boa hora, os dois são fundamentais para a reorganização das coisas. Quer coisa mais gostosa do que conseguir falar tudo numa crise descontrolada e depois cair sentada no sofá num choro convulso ? Pode ser salvador. Mas e a boa sensação que dá ter deixado a cabeça esfriar e ver a besteira que conseguiu deixar de fazer contando até dez? Os dois lados da moeda produzem alívio.

Antes de ser mãe, eu ouvia os gritos de uma vizinha com seus filhos e pensava "Coitada dessas crianças!" Um dia, gritando com os meus, me lembrei dela; E também do meu desagrado. É o eterno dilema. Quero ter direito a bater portas, mas não quero viver numa casa onde batem portas. E harmonia dá trabalho.

Um dia, ainda muito pequeno, meu filho Pedro, grande decodificador de humores, me disse: "Mamãe, você tá falando assim comigo porque você tá nervosa do seu trabalho, né?" Era. E chorei abraçada ao pequeno. Pedro já tentava entender o que é humano. Quem de nós nunca mentiu, nunca teve raiva, ciúme, inveja, desprezo ou até vontade de bater em alguém? O que fazemos com esse material poderoso? Deixar no fundo da represa pode ser perigoso. Sair explodindo por aí, com certeza é. Acho que a saída só pode estar no amor. O lugar é comum, mas o uso dele não é. Tenho a impressão de que só o reconhecimento e o afeto podem dar verdadeira vazão aos nossos sentimentos mais perversos. E, para não dizer que esqueci tudo o que aprendi com irmã Ângela, cito os Coríntios: "Ainda que eu falasse a língua dos homens  e dos anjos, sem amor...".



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