No Brasil, pedir água filtrada em restaurante só serve para espantar o garçom. Ele chega à mesa e já oferece duas alternativas, com ou sem gás. Água mineral ou mineralizada, naturalmente, quase sempre em garrafas PET, a praga mundial para a qual não se encontrou solução compatível com o volume do descarte. Mas os garçons daqui, com raras exceções, não oferecem água da bica.
Hábito comum na Europa e nos Estados Unidos, inclusive nos restaurantes, que servem jarras nas mesas sem nada cobrar por isso, beber água de torneira ainda não pegou no Brasil. São poucos os restaurantes que já adotam essa prática, alguns cobrando um valor quase simbólico pelo serviço. Mas em Paris, por exemplo, á água de torneira vem sendo oferecida de todas as formas para deter o avanço das águas engarrafadas. A empresa de águas parisiense chegou a montar na Praça Reuilly uma fonte que oferece eau de robinet gaseificada e gelada. De graça.
O que os engenheiros sanitaristas dizem, com relação à maioria dos grandes sistemas de abastecimento no Brasil, é que a água sai da estação de tratamento em condições de ser bebida, desde que as caixas d`água domésticas sejam higienizadas a cada seis meses. Nenhum problema se a empresa de abastecimento da cidade obedecer à legislação em vigor, especialmente à Portaria 2914/11, do Ministério da Saúde (em Pirapora, o SAAE cumpre integralmente esta portaria), que estabelece os limites máximos de micro-organismos e padrões de controle de qualidade.
Sendo potável, a água da torneira pode ser bebida sem medo já que, antes de chegar a nós, passa por tratamentos que eliminam substâncias nocivas para a saúde. Mesmo assim, tem gente que não bebe água da torneira de jeito algum. Tanto aqui como lá fora. A desconfiança vem, muitas vezes, do cheiro forte e da cor esbranquiçada, provocados pelo cloro. Mas é uma espécie de mito da população não beber essa água quando ela vem tratada. Se tiver cheiro e cor do cloro, aí é que está boa, garantem as empresas de saneamento. Mas por que, então, de uns tempos para cá assumimos que a água engarrafada é a mais pura, desde que higienicamente preparada para evitar impurezas?
A pureza é justamente o argumento de venda mais martelado pela indústria de garrafas de água. Se examinarmos os rótulos das principais marcas, veremos variações das palavras “pura” e “natural” repetindo se interminavelmente. Quanto é verdadeira essa mensagem?
Anos atrás não era preciso ir até o supermercado para comprar água. Bastava abrir a torneira, encher e beber – e quase de graça. Mas na última década tudo isso mudou, e hoje se vive num mundo inundado em água de garrafa. Só nos Estados Unidos são 600 marcas disponíveis. O Brasil comercializa a mesma quantidade de marcas de água mineral. E a cidade de Nova York acumula 2,5 bilhões de descartáveis por ano, sendo que desses, 2 milhões de toneladas são de garrafas plásticas.
Segundo a militante anticonsumista Annie Leonard, que postou um vídeo no YouTube intitulado “A história da água engarrafada”, esse grande negócio começou quando os comerciantes perceberam que a venda de refrigerantes começava a estagnar e precisavam inventar um produto novo para não perder dinheiro. Como conseguir isso? Simples, basta fazer estrondosas campanhas de marketing dizendo que a água engarrafada é a saudável, ao contrário da água da torneira, e está criado esse novo produto. Na verdade, água engarrafada é apenas isso mesmo, água, embora esse fato não impeça que as pessoas a comprem, só por vir numa garrafa.
Para inovar, essas companhias trataram de criar a chamada demanda manufaturada, que gera mercados multibilionários. E para criar um mercado usando um produto gratuito disponível para todos, como a água, seria necessário criar e difundir o mito da água contaminada da torneira, ou de que essa água não era saudável nem saborosa, era impura. Precisavam esconder a realidade com uma forte campanha de marketing contra a água da bica. A estratégia de marketing, segundo a americana Annie, começou por volta dos anos 1970 e se alastrou de tal forma que, ela lembra, em muitos locais as águas ficaram realmente poluídas devido ao lixo jogado em rios e lagos pelas próprias indústrias de garrafas.
Esses argumentos são de uma ativista pró-sustentabilidade, mas o fato é que, já em 2002 as empresas americanas gastaram US$ 93.8 milhões para convencer as pessoas a tomar água engarrafada, em vez de água de torneira (quase sempre segura). Chegaram ao ponto de glamurizar a água, criando águas com sabor, que já viraram mania e tiveram até a atriz Jenniffer Aniston (fotografada por Mario Testino) como garota propaganda da Smart Water… com “eletrólitos”. Apesar de ainda existirem cerca de 900 milhões de pessoas no mundo que não têm acesso a uma água de boa qualidade, segundo dados da ONU, já é visível esse excessivo consumo de água engarrafada sem necessidade por parte de populações que têm acesso à água tratada. De acordo com a Beverage Marketing Corporation, empresa norte-americana de consultoria, os americanos gastaram mais de 8 bilhões de dólares em água engarrafada em 2002 – dez vezes o valor de uma década atrás. E mais: no ano seguinte, pela primeira vez na história, o consumo de água pelos norte-americanos ultrapassou o de cerveja e o de café, perdendo apenas para os refrigerantes na lista de suas bebidas favoritas.
Realidade para os brasileiros
O engenheiro Lineu Alonso, ex-presidente da ABES e presidente da ETEP – consultoria, gerenciamento e serviços que faz estudos e projetos na área de saneamento - explica que, apesar de ser absolutamente normal beber água da torneira em diversos países do mundo, são necessários dois fatores para essa prática se tornar realidade entre nós, brasileiros.
O primeiro é a confiança no tratamento. Ainda há uma grande desconfiança na pureza da água fornecida pelo poder público, o que é perfeitamente compreensível. Na década de 1990, a Cetesb - Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo - fez estudos em vários municípios paulistas e verificou que a água estava fora dos padrões estabelecidos pela legislação em vigor. “Tudo leva a crer que isso ainda possa acontecer em vários outros municípios brasileiros”, diz Lineu Afonso, “o que leva à desconfiança generalizada”.
Alguns municípios brasileiros, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, ainda não atingem o padrão de qualidade da água estabelecido pela OMS – Organização Mundial de Saúde.
Mas um processo de tratamento bem feito é garantia de uma água potável de qualidade. E o cloro usado nesse tratamento é uma dessas garantias. A dosagem de cloro adotada no nosso país mata a contaminação na rede. Se bebêssemos a água que vem direto dos reservatórios – como ocorre na França, na Inglaterra, na Itália - estaríamos bebendo água confiável. “O maior vilão é a caixa d´água”, afirma Lineu Alonso, para quem esses recipientes intermediários são o segundo fator que desaconselha a ingestão da água diretamente da torneira.
Ao contrário de outros países, aqui no Brasil não tomamos a água que vem direto da rede, uma água sempre sob pressão e difícil de ser contaminada. A desconfiança na regularidade do fornecimento, que gerava e ainda gera a conhecida falta d´água em muitos lugares, até mesmo nas grandes cidades, fez com que os brasileiros adotassem a caixa d´água para fazer o armazenanamento. A água vem do reservatório, cai e fica livre na caixa por um, dois até mais dias. É aí que mora o perigo. As caixas são foco de poluição ,e se não forem muito bem limpas,podem causar contaminação da água. Nas caixas d’água pode haver lodo, bactérias e, se estiverem mal tampadas, animais mortos, como ratos. E então lá se vai todo o trabalho da estação de tratamento, que acaba sendo perdido. Até mesmo algumas águas engarrafadas apresentam contaminação. As de garrafão, segundo Lineu Alonso, são as que apresentam mais surpresas, pois não sabemos a origem de muitas delas. Por isso, ele aconselha evitar essas águas e só beber água engarrafada se soubermos que sua procedência é de companhias cuidadosas. De acordo com levantamento feito em 2002 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 14% das 190 amostras de água mineral analisadas tinham irregularidades sanitárias. As contaminações podem ser resultado de problemas na própria fonte ou de embalagens sujas e mal conservadas. Nas lojas, a água engarrafada deve ser armazenada em local arejado, sem contato com o chão e com a luz solar.
Reportagem extraída de: BIO Revista Brasileira de Saneamento e Meio Ambiente. Ano XVIII – nº56, julho/setembro de 2010.
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