domingo, 9 de fevereiro de 2014

Talidomida, o remédio amargo - Luciana Christante


O medicamento, desenvolvido na Alemanha sem nenhum protocolo clínico, começou a ser comercializado no Brasil há 50 anos para induzir ao sono e reduzir enjoos durante a gravidez. Considerada "absolutamente segura", a droga trouxe resultados trágicos: bebês nasceram deformados e pacientes desenvolveram neuropatia periférica

Indicada inicialmente como tranquilizante e indutor do sono e, depois, como remédio contra enjoos na gravidez,  a talidomida foi responsável pelo nascimento de milhares de bebês com deformações inconfundíveis e, por um número ainda maior de casos de neuropatia periférica (quadro de dor crônica intensa nos membros) em adultos. Só depois da tragédia é que o mundo entendeu que nenhum medicamento é totalmente seguro.

A história começou há mais de meio século. Em meados de 1961, o advogado alemão Karl Schulte-Hillen procurou o chefe da clínica pediátrica da Universidade de Hamburgo. Levava debaixo do braço uma radiografia de sua filha recém-nascida, que tinha braços e pernas extremamente reduzidos e deformados. Intrigava-o o fato de o bebê de sua irmã, nascido seis meses antes, apresentar o mesmo problema - o que o levava a suspeitar de uma doença hereditária. Ao ver o exame, o médico que o atendeu, o pediatra Widukind Lenz, saiu imediatamente da sala. Quando voltou, trazia um raio-x praticamente idêntico que acabara de receber na mesma manhã. Sem imaginar que estavam na iminência de revelar ao mundo um grande desastre, Lenz e Schulte-Hillen resolveram publicar anúncios em jornais, em busca de outras famílias que enfrentassem situação semelhante.

Em Sydney, Austrália, o obstetra William MacBride, do Hospital Crown Street, também estava confuso. Algumas de suas primeiras pacientes tratadas com talidomida deram á luz bebês com deformidades jamais vistas e, em alguns casos, fatais. McBride se debruçou sobre livros de teratologia e vasculhou a literatura médica em busca de casos parecidos. Tudo o que encontrou foi um artigo publicado um ano antes no British Medical Journal, sugerindo que o uso prolongado da talidomida poderia causar neuropatia periférica severa e irreversível, para a qual os analgésicos surtiam efeito muito limitado. Isso bastou para que o médico se convencesse de que não estava lidando com uma droga "absolutamente segura", como afirmava enfaticamente seu fabricante.


Resquícios do nazismo

A tragédia da talidomida remonta ao início dos anos 50 de uma Alemanha arrasada pela Segunda Guerra Mundial. Em Stolberg, vilarejo perto de Düsseldorf, funcionava desde 1946 uma precária empresa familiar produtora de pomadas, xaropes e desinfetantes, porém ávida para entrar no então promissor mercado dos antibióticos. Sob direção do médico Heinrich Mückter, egresso do alto escalão das forças nazistas que haviam ocupado a Polônia, a Chemie Grünenthal não conseguiu emplacar antibiótico algum, por outro lado encontrou, em 1954, uma molécula que tinha tudo para ser uma excelente alternativa aos tranquilizantes barbitúricos, muito usados na época, mas cujos efeitos tóxicos e vários casos de morte por overdose tornavam seu uso cada vez mais preocupante.

Os testes da talidomida em animais foram realizados por Wilhelm Kunz, ex-sargento do Terceiro Reich, e seu assistente  Herbert Keller, um jovem farmacologista sem experiência. O que mais os impressionou foi a aparente ausência de toxicidade da droga: fora impossível determinar a DL50, isto é, a dose com a qual um fármaco produz a morte de metade da amostra de animais - parâmetro-chave usado até hoje para determinar a segurança de um fármaco. Entretanto, o efeito terapêutico desejado - a sedação - não foi verificado em nenhuma das espécies estudadas (camundongos, cobaias, coelhos, gatos e cães), o que não chegou a desanimar o pessoal da Grünenthal. A possibilidade de um medicamento "totalmente seguro" era boa demais para ser descartada precocemente, e a empresa não hesitou em dar início aos testes em seres humanos.

Sem seguir quaisquer protocolos clínicos (que existiam à época, mas não eram obrigatórios), a Grünenthal usou o que poderia ser chamado de "método da roleta-russa": simplesmente distribuiu amostras grátis em hospitais, clínicas e consultórios da Alemanha, juntamente com um farto material publicitário que destacava a "absoluta segurança" do medicamento. Por uma infeliz coincidência, observou-se em humanos um leve efeito tranquilizante e indutor do sono, que tinha ainda a vantagem de não comprometer a atividade motora, isto é, não deixava a pessoa fisicamente "lenta" como outros calmantes. ERa a "prova" que faltava.


Primeiros relatos

Em 1957, a talidomida começou a ser vendida sem prescrição médica como sedativo, na Alemanha. No ano seguinte, um contrato de licenciamento permitiu sua produção no Reino Unido pela Distillers Co. Biochemical, empresa que vinha do setor de bebidas e não tinha um farmacologista sequer na equipe. Por meio da Distillers, o medicamento foi comercializado em 146 países, incluindo o Brasil.

Antes de se tornarem públicos os primeiros casos de bebês com focomelia, malformação congênita caracterizada pelo encurtamento de braços e pernas, alguns médicos britânicos e alemães já haviam advertido a Grünenthal que o uso contínuo da talidomida por mais de seis meses podia levar a danos severos e irreversíveis nos nervos periféricos, causando formigamento, perda de sensibilidade e dor intensa nos pés e nas mãos. Os médicos pediam que a droga passasse a ser vendida sob prescrição, mas seus apelos foram ignorados.

Usada indiscriminadamente como indutor de sono em crianças, adultos e idosos, a talidomida ganhou mais uma indicação depois que o obstetra australiano William McBride testou, a pedido da Distillers, uma possível nova utilidade para o fármaco. Ele ficou impressionado com a redução de enjoos e vômitos no início da gravidez, e quando começou a se dar conta das desastrosas conseqüências para os bebês, vários casos de focomelia (malformação caracterizada pela aproximação ou encurtamento dos membros junto ao tronco do feto) já eram comuns em maternidades alemãs. Mas como o governo não fazia o registro epidemiológico e os meios de comunicação eram precários, os médicos acreditavam estar lidando com casos isolados, além do mais, ninguém suspeitaria de uma droga "totalmente segura". Colaborava também para a desinformação a crença de origem medieval, mas ainda vigente na época - até mesmo entre médicos - de que nenhuma substância prejudicial poderia atravessar a placenta. Poucos sabiam, entretanto que havia sido provado, em 1955, que qualquer molécula com peso molecular inferior a mil quilodáltons (KDa) consegue passar por essa barreira. O peso molecular da talidomida é 258 KDa.

Apesar das estratégias de marketing da Grünenthal e da Distillers para confundir a classe médica, a situação se tornou insustentável no início de 1961, o pico da epidemia. Graças ao empenho de Widukind Lenz e William McBride, a droga foi banida do mercado europeu em novembro, entretanto no Brasil a retirada só aconteceu em 1965.

Em maio de 1968, teve início o julgamento, pela corte alemã, de sete executivos da Grünenthal por terem colocado no mercado uma droga sem testá-la adequadamente, causando danos irreparáveis a milhares de pessoas. O processo foi encerrado em novembro de 1970,com um acordo no qual a empresa concordou em pagar US$ 31 milhões em indenizações para as vítimas na Alemanha. No Reino Unido, a Distillers teve de desembolsar US$ 20 milhões para um fundo de apoio aos sobreviventes. Em ambos os países, a justiça entendeu que, mais importante que punir poucos indivíduos, era essencial ajudar as famílias afetadas e estabelecer dali em diante mecanismos regulatórios que protegessem a sociedade contra incidentes desse tipo.


Resistência americana

Até o início dos anos 60, os Estados Unidos eram o único país a ter uma agência governamental para regulação de medicamentos. Ainda assim, foi só em 1962 que a aprovação de fármacos pelo Food and Drug Administration (FDA) passou a funcionar nos moldes de hoje - o que se deve ao episódio talidomida. A droga nunca entrou no mercado americano graças à resistência da médica Frances Kelsey, que julgou insuficientes os testes clínicos e pré-clínicos apresentados pela Grünenthal. Mais tarde, quando a epidemia eclodiu, Kelsey tornou-se uma espécie de heroína nacional e conquistou credibilidade para implementar mudanças na agência, tornando seus processos de aprovação mais rigorosos.

A exemplo dos Estados Unidos e com estímulo da Organização Mundial da Saúde (OMS), vários países começaram a criar seus próprios sistemas para regular e padronizar os protocolos de pesquisa clínica e pré-clínica. Vale a pena lembrar, porém, que diferentemente da Grünenthal e da Distillers, boa parte dos laboratórios farmacêuticos realizava seus testes seguindo métodos pré-estabelecidos, ainda que sem diretrizes governamentais definidas, como atualmente, fato que ajuda a explicar, aliás, por que o desastre da talidomida é um caso sem precedentes. A tragédia também motivou discussões na OMS que deram origem à criação, em 1968, do Programa Internacional de Monitoramento de Drogas, que hoje reúne 79 países-membros, entre eles o Brasil, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Ainda no fim da década de 60, a talidomida voltou a figurar no receituário médico, depois que pesquisas apontaram sua utilidade no tratamento da hanseníase. Nos anos seguintes, porém, a falta de informação e o descontrole na distribuição do medicamento pelo governo brasileiro levaram à segunda geração de pessoas com focomelia no país. Só em 1997 o Ministério da Saúde regulamentou o registro, a comercialização e a prescrição do fármaco, proibindo seu uso em mulheres em idade fértil. Infelizmente a medida não conseguiu impedir a ocorrência de novos casos nos últimos anos. Entre 2006 e 2007, pelo menos três bebês nasceram com as típicas malformações congênitas. Como não há registro sistemático e as observações foram casuais, especialistas estimam que outros casos devam existir, sobretudo em regiões endêmicas, como em alguns estados do Norte e Nordeste.

Embora a droga seja distribuída sob prescrição apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), acredita-se que o hábito da automedicação e a falta de informações adequadas aos pacientes expliquem o retorno do pesadelo. Há suspeitas ainda de que algumas mulheres tenham tomado a talidomida com a intenção de abortar. O assunto foi destaque na imprensa estrangeira, particularmente a alemão, no começo deste ano. O Brasil é o único país do mundo a ter uma segunda e uma terceira geração de casos de focomelia causados pela talidomida.

Em abril deste ano, um protesto em frente à embaixada da Alemanha em Londres reuniu centenas de sobreviventes da tragédia da talidomida. Na faixa dos 50 anos, estas pessoas começam a sentir os efeitos mais acentuados do envelhecimento sobre suas deficiências físicas e cobram da empresa Grünenthal - ainda em atividade e nas mãos da mesma família - a criação de um novo fundo de apoio às vítimas. Por enquanto, porém, não há definição quanto ao atendimento das reivindicações.



(texto publicado na revista Mente Cérebro nº 189)















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