domingo, 30 de março de 2014

O homem vitruviano - Carlos Camargo


De vez em quando olho para a biblioteca e me perco pensando nas histórias que eles contam, em personagens que poderiam ter vivido outras aventuras, deixo minha imaginação voar pelos descaminhos da ficção. Estava fazendo isso agora e vi o nome Leonardo Da Vinci. Peguei o livro, comecei a folhear e lá estava a figura do homem vitruviano, uma das suas criações mais brilhantes, coisa de gênio ou de louco, ou ambas porque prova matematicamente que o homem tem equilíbrio, é equilibrado, embora não se comporte como um. Mas, disso, não podemos culpá-lo, a imagem tem tantos significados que ao longo dos tempos tem sido presença marcante em escolas de artes e museus de todo o mundo.

Hoje eu a vi como uma roda de bicicleta descendo uma estreita estrada daquelas que circundam as montanhas do interior italiano. Desgovernada. Conforme descia sua velocidade aumentava, uma roda solta sem freio e dentro dela, servindo como seus raios o homem vitruviano esticado. Seu rosto demonstrava serenidade e isso acalmava um pouco a minha angústia que crescia a cada metro a mais que a roda descia. Aquele rosto que, ás vezes parecia ser o mesmo do desenho, em outras das vezes era o do Leonardo e, em outras, era o meu rosto.

Não havia qualquer identificação da rua ou da região. Não havia nenhum outro movimento além daquela roda que continuava sua descida, nenhum tipo de animal ou de ave. Era um dia claro, sem vento, pois a vegetação na encosta da montanha não se movia, e nada se ouvia além de uma espécie de assovio que saia da roda em tom baixo, quase sussurrando "socorro". Ou, talvez, fosse impressão minha. Qual seria a interpretação dessa ficção, se é que se tratava de ficção? Nunca se sabe e eu aprendi a respeitar as viagens da minha imaginação, deixá-la solta e observar como se fosse um seu acompanhante.

Em "E.T." Steven Spielberg, ao mostrar os meninos amigos do pequeno alienígena fugindo da polícia para levá-lo de volta à nave, fez os meninos em suas bicicletas alçarem voo. Criativa, cenicamente linda e envolta pelo emocional do momento da história, ninguém se preocupou se aquilo era ou não possível. Por que se preocupar com a banalidade do real? Importante foi aquilo que cada espectador sentiu ao subir pedalando sua bicicleta para o céu, importante foi saber que sua mãe estava lá embaixo torcendo por ele, importante foi ver todos que assistiam ao filme, enxugar as lágrimas e torcer a favor do "E.T.". Eu também.

Não sei o que acontecerá com aquela roda de bicicleta correndo desgovernada ladeira abaixo, num lugar desconhecido. Quando terminar a descida poderá se espatifar contra uma parede, um barranco, a própria terra ao fim do precipício; poderá cair num mar e se perder ao fundo das águas; poderá aparecer o Spielberg e fazê-la voar para um lugar macio de suave aterrissar; ou poderá continuar sua odisseia deste cair desgovernado como um bêbado equilibrista, para um futuro do sei lá como será... Mais ou menos, como vivemos em muitos momentos da nossa vida nos anos anteriores e, como nada ainda sabemos deste ano começado, só nos resta esperar, com esperança de que a nossa realidade possa ser tão bela e venturosa como muitos dos nossos filmes e livros. Eu confio na minha imaginação!



(texto publicado na revista Leve & Leia nº 46 - fevereiro de 2014)


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