segunda-feira, 23 de abril de 2012

Como o filme "Festim Diabólico" de Hitchcock alonga o tempo

Trecho do filme estrelado por James Stewart



A elasticidade do tempo talvez seja mais bem apreciada quando somos espectadores de uma apresentação, um filme, uma peça, concerto ou palestra. A duração real da apresentação e a percepção mental dela são diversas. Para ilustrar os fatores que contribuem para esta experiência diferente de tempo, tomemos o exemplo do filme Festim diabólico, de Alfred Hitchcock, de 1948. Este trabalho técnico notável foi filmado continuamente, em tomadas ininterruptas de dez minutos cada. Poucas obras foram produzidas inteiramente usando esta técnica.

Orson Wells em A marca da maldade, Robert Altman em O jogador e Martin Scorsese em Os bons companheiros, empregaram tomadas longas e contínuas, mas não tão consistentemente como em Festim diabólico. (Apesar dos muitos aplausos ao diretor pela inovação, todos os envolvidos a odiaram e Hitchcock usou o método novamente apenas em parte do filme seguinte, Sob o signo de Capricórnio.)

Hitchcock inventou esta técnica por um motivo sensato. Tentava retratar uma história contada em uma peça teatral,  acontecendo em tempo contínuo, mas foi limitado pelo tanto de filme que conseguia carregar na cãmera, que rendia cerca de dez minutos de ação.

Vamos considerar a percepção do tempo real do filme pelo cérebro. Em uma entrevista de 1966 com François Truffaut, Hitchcock afirmou que a história começa às 19:30 e termina às 21:15, 105 minutos depois. Mas o filme consiste em oito rolos de 10 minutos, um total de 80 minutos, incluindo os créditos no início e no fim. Onde vão parar os 25 minutos faltantes ? Sentimos que o filme é mais curto que 105 minutos ? Na verdade, não. O filme não parece mais curto que deveria e a plateia não tem noção de pressa e velocidade. Pelo contrário, para muitos, o filme parece mais longo que o  tempo de projeção.

Suspeito que vários aspectos são responsáveis por esta alteração de percepção temporal. Primeiro, a maior parte da ação se passa na sala de uma cobertura no verão e o horizonte nova-iorquino é visível pela janela panorâmica. No início do filme, a luz sugere que seja final de tarde; ao final, à noite caiu. Nossa experiência diária com o cair da noite nos faz perceber a ação em tempo real, cobrindo as horas do anoitecer, mas, na verdade, estas mudanças de luz são artificialmente aceleradas por Hitchcock.

Da mesma forma, a natureza e o contexto das ações explicam outros julgamentos automáticos sobre duração. Após o notório assassinato hitchcockiano, que ocorre bem no início do primeiro rolo de filme, a história se concentra em um elegante jantar patrocinado pelos dois assassinos repugnantes e que conta com os parentes e amigos da vítima. O período real durante o qual a comida é servida dura cerca de dois rolos. Mas o público atribui mais tempo a essa sequência, pois sabemo que nem os anfitriões, nem os convidados, que estão calmos, educados e sem pressa, engoliriam o jantar numa velocidade tão grande. Quando mais tarde a ação se divide - alguns convidados tagarelam na sala, diante da câmera, e outros vão à sala de jantar para ver alguns livros raros - sabiamente nossa razão atribui maior duração para esse episódio oculto que os poucos minutos que leva o filme em si.

Outro fator pode contribuir ainda para a desaceleração do tempo. Não há cortes rápidos a cada dez minutos do rolo; a câmera se aproxima e se afasta suavemente de cada personagem. Porém, para juntar cada segmento com o próximo, Hitchcock acabou a maioria das tomadas com um close em um objeto: a câmera se move para traz de um ator com terno escuro e a tela fica preta por alguns segundos. A próxima tomada começa com a câmera se afastando das costas do ator.

Embora a interrupção seja breve e não visa sinalizar um intervalo de tempo, pode contribuir para alongar o tempo, pois costumamos interpretar intervalos na continuidade da percepção visual como um lapso na continuidade de tempo. Dispositivos de edição de filmes como a dissolução e o enfraquecimento da luz muitas vezes levam o espectador a inferir que o tempo passou entre a tomada anterior e a seguinte. Em Festim diabólico, cada um dos setes intervalos atrasa o tempo por frações de segundo. Mas, cumulativamente para alguns espectadores, os intervalos podem sugerir que mais tempo transcorreu.

O conteúdo emocional do material pode ainda estender o tempo. Quando estamos incomodados ou preocupados, muitas vezes sentimos o tempo mais lento, pois focamos em imagens negativas, associadas com nossa ansiedade. Estudos em meu laboratório sugerem que o cérebro acelera a geração de imagens quando experimentamos emoções positivas (talvez seja por isso que o tempo voa quando nos divertimos) e reduz a velocidade durante emoções negativas. Em um voo recente com muita turbulência, minha percepção de tempo foi lenta, talvez poqrue minha atenção estivesse direcionada no mal-estar da experiência. A inquietação da situação no Festim diabólico pode igualmente conspirar para alongar o tempo.

O Festim diabólico cria uma discrepância notória entre tempo real e a percepção de tempo dos espectadores. Assim, ilustra como a experiência de duração é construída. É baseada em fatos tão variados quanto o conteúdo dos eventos sendo percebidos, as reações emocionais provocadas pelos eventos e o modo pelo qual as imagens nos são apresentadas, além das conclusões conscientes e inconscientes que acompanham imagens do filme.



(texto escrito pelo prof. Antonio Damasio e publicado na revista Scientific American Brasil)






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