quinta-feira, 17 de maio de 2012

O rugido do ligre - Mário Eduardo Viaro

Termos híbridos, como o que nomeia o filhote de leão e tigre, mostram os limites de julgar uma língua sem qualquer investigação histórica.

Há alguns anos, a televisão brasileira anunciou o nascimento de um "ligre", que seria um felino e híbrido, filhote do cruzamento de um leão com uma tigresa. Costuma-se diferenciar esse animal do descendente de uma leoa com um tigre macho, ao qual se dá o nome de "tião". Há muitas páginas na internet que se referem a ambos os animais. Com conhecimentos básicos de biologia, qualquer pessoa sabe que tanto o ligre quanto o tião são animais estéreis, pois são fruto da união de espécies diferentes. O mesmo ocorre com a mula, que é o cruzamento de um jumento com uma égua.

Dessa forma, não existem filhotes de ligres, como não existem de mulas. O indivíduo híbrido, contudo, tem características independentes das espécies que se mesclaram, como se fosse um terceira espécie sem futuro. Num ligre, por exemplo, além de ter listras e juba, como se espera de uma mescla de tigre com leão, observam-se um tamanho maior e um comportamento distinto do das espécies que o geraram.

Se alguém perguntasse de onde vem o nome "ligre" seria fácil para qualquer pessoa falante do português descobrir sua etimologia: "ligre" é obviamente uma mistura das palavras "leão" e "tigre", por meio dos segmentos l - e - igre. Isso parece natural, como se fosse evidente a falta de arbitrariedade nas formações vocabulares. Contudo, os elementos que compõem a palavra são significativos a posteriori: não têm o status de alomorfes, ao menos parece que não têm. Se perguntassem a um falante qualquer como se referir a um espécime fêmea de ligre, com certeza alguém diria "ligresa", por analogia a "tigresa". O mesmo para o "tião", cujo feminino seria automaticamente "tioa", por causa da semelhança com o par "leão": "leoa" (e não, por exemplo, "tiã", como se deduziria de um par "irmão", "irmã").

Comunicação

Indagando um falante nativo qualquer que não seja a si mesmo, é impressionante a quantidade de respostas diferentes para casos que julgamos óbvios. Todo falante do português sabe que "Zé" vem da palavra "José", que o "étimo" de "PT" é "Partido dos Trabalhadores", que a palavra gay é inglesa e que pizza vem do italiano. Qualquer um percebe que "coiso" é uma formação masculina e chistosa de "coisa". Isso porém não é válido para todo e qualquer item linguístico. Nem todo mundo sabe que "SMF" é sigla de "Sua Majestade Fidelíssima". Só aqueles que sabem que "cris" é uma forma arcaica de "eclipse" o enxergará no regionalismo "encrisar" (ficar nublado).

Conduta científica

Não é difícil provar a ineficácia do falante nativo quando se trata de resolver problemas de sua própria língua. Se perguntar a algum falante com conhecimentos mínimos de gram´tica, como eu fiz, de onde vem a palavra "engenheiro", ele afirmará (às vezes com muita certeza) que vem de "engenho"; "cruzeiro" virá de "cruz"; "enfermeiro", de "enfermo"; "carteira" de "carta"; "carneiro", de "carne"; "palmeira", de "palmito"; "parceiro", de "par". Se perguntar a outros falantes, terá outras respostas. Mesmo doutores em Letras não acertarão muito mais.

 Hibridismo

Voltemos ao "ligre". Qual língua teria criado de fato o vocábulo? Qual o teria divulgado? É tarefa da etimologia responder. O produto híbrido, para chegar à forma acima, passa às vezes por várias tentativas. No italiano, por exemplo, citam-se pequenas variações (dependendo do sexo das espécies envolvidas na criação do híbrido): ligre, tigone, leo-ligre, leo-tigone em vez de "tigrone" é revelador e uma pista para um problema: por que o português diz tião e não "tigrão" como no inglês tigron?

Qualquer falante sabe a resposta: "tigrão" seria confundido com o aumentativo (ou com acepção criada pela gíria do funk). Esse mecanismo de evitar formas já existentes é conhecido pela Morfologia como "bloqueio". Embora não seja uma lei de funcionamento universal, é de fato um mecanismo de que os falantes se valem de forma meio arbitrária e que pesa às vezes na escolha das variantes.

Uma língua não é um monólito. No meio dos discursos que a rodeiam, as palavras têm frequência de uso e expressividade, no entanto, isso muda com o tempo: palavras expressivas se desgastam justamente por causa da frequência maior de uso e novas palavras são criadas para substituí-las. Explicá-las quando estão nascendo parece fácil somente para quem o fenômeno do empréstimo não entra em cogitação, pois uma língua nos deixa ilhados, do ponto de vista comunicativo. No entanto, por meio da rede internacional de computadores podemos hoje observar que nossa ilha faz parte de arquipélagos mais ou menos parecidos e isso não se deve somente à coincidência. Em breve, porém, a internet padecerá do mesmo problema dos dicionários: como sua popularidade já tem mais de uma década de história, dados antigos e desusados conviverão com os neologismos, o que tornará a separação entre suas sincronias cada vez mais difícil.


(texto publicado na revista Língua Portuguesa)

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