As Sessões", inspirado nos escritos autobiográficos do jornalista e poeta Mark O'Brien, conta a história de um homem que viveu a maior parte de sua vida em um pulmão de ferro e está determinado - aos 38 anos - a perder sua virgindade. Com a ajuda de seu terapeuta e a orientação de seu padre, ele se propõe a tornar seu sonho uma realidade.
Um ator iluminado
Helen Hunt está indicada ao Oscar por As Sessões, mas é John Hawkes quem assombra no filme sobre o sobrevivente de pólio que resolve iniciar a vida sexual
Do momento em que contraiu poliomielite, aos 6 anos, até o dia em que morreu, aos 49, o poeta e jornalista Mark O'Brien nunca pôde passar mais do que três ou quatro horas seguidas fora de seu pulmão de aço - "depende de quanto eu esteja me divertindo", diz ele a uma de suas cuidadoras, com o senso de humor brincalhão que foi a marca tanto do personagem verídico quanto da estupenda interpretação que faz dele o ator John Hawkes em As Sessões (The Sessions, Estados Unidos, 2012).
Católico devotado mas inquieto, Mark, já trintão, pede ao padre que acabou de assumir sua paróquia conselhos sobre um assunto que o vem atormentando: sexo. Inteiramente paralisado (à exceção de um músculo no pé, outro no pescoço e outro ainda no maxilar), mas não privado de sensação, Mark vem tendo animados diálogos, por assim dizer, com seu pênis. Vez por outra, inclusive, este trava conversas inesperadas com as cuidadoras durante o banho de esponja, para profundo constrangimento do paciente.
O que Mark quer saber do padre, interpretado com medidas iguais de empatia e de perplexidade espiritual por Willian H. Macy, é se seria pecado ele perder a virgindade fora do casamento. O padre olha para Cristo na cruz, em busca de inspiração, e opina: é quase certo que Deus deixe essa passar. E assim começa a epopeia de Mark no campo da intimidade física - tanto mais instigante porque, sob a direção do australiano Ben Lewin, ela contém todos os obstáculos específicos a uma pessoa com graves limitações; mas, ao mesmo tempo, é a imagem posta a nu, literalmente, das coisas que se passam com qualquer homem ou mulher quando estes se despem diante de outra pessoa e a enfrentam sem contar com nada além do próprio corpo e daquilo que são.
Sem namorada (não por falta de tentativa), Mark contrata os serviços de uma terapeuta sexual especializada em deficientes físicos. No primeiro encontro, enquanto tira a roupa, Cheryl Cohen Greene (Helen Hunt) explica que não é uma prostituta; trabalha por um máximo de seis sessões com cada cliente, ou menos, se o objetivo for atingido antes. O objetivo, no caso, sendo o sexo plenamente realizado - algo que, no decorrer da breve convivência entre Mark e Cheryl, deixará de ter sentido técnico para ganhar uma dimensão que pega a terapeuta de surpresa: é ela, não ele, a pessoa mais poderosamente arrebatada pela emoção da intimidade.
"O que se costuma esperar dos deficientes nos filmes é que eles sejam quase que super-heróis e façam coisas extraordinárias. Mark, porém, quando o vemos, já domou todos os aspectos necessários à sobrevivência e à superação; o que ele quer fazer, agora, é a coisa mais comum de todas - ter um vida sexual", resumiu a VEJA o diretor Ben Lewin, que tem 66 anos e é ele próprio um sobrevivente de poliomielite. Ágil com as muletas, Lewin passou um breve período da infância na dependência de um pulmão de aço, durante sua convalescença. Mas acredita que não foi esse o aspecto de sua experiência pessoal que mais o ligou ao personagem: "Esse misto de vergonha e desejo - isso é algo que um portador de deficiência provavelmente conhecerá bem. E um sentimento com o qual, feitas as contas, qualquer indivíduo tem boas chances de se identificar".
Diz a máxima que metade do trabalho de um diretor é escolher seu elenco; se cumprir bem essa tarefa, o resto virá fácil. "Metade é uma estimativa conservadora. Eu colocaria essa fração em pelo menos 80%", brinca Lewin, que, como boa parte do público, aliás, tinha noções não mais do que vagas sobre quem era John Hawkes quando a diretora de elenco sugeriu seu nome. Apavorante como o caipira Teardrop de Inverno da Alma (pelo qual foi indicado ao Oscar há dois anos), enternecedoramente tímido como o comerciante Sol da série Deadwood ou apaixonante como um vendedor de sapatos (por estranho que isso soe) em Eu, Você e Todos Nós, Hawkes faz meia dúzia ou mais filmes por ano e é um ator cuja versatilidade trabalhar a favor de sua reputação - mas contra sua fama. Em As Sessões, tudo que o filme quer ser, e é, se assenta sobre seu desempenho (muito embora o ator inexplicavelmente não tenha sido indicado ao Oscar; esse privilégio ficou só com Helen Hunt). Irretocável nas minúcias físicas, o trabalho de Hawkes é grandioso, entretanto, porque faz com que, a certa altura, as restrições de seu corpo percam o peso que têm de início: é só Mark O'Brien, com seu humor, seu dom para o flerte e sua inteligência, quem conta. Eis, enfim, um filme em que a doença determina a vida do personagem - mas não define quem ele é.
Um ator iluminado
Helen Hunt está indicada ao Oscar por As Sessões, mas é John Hawkes quem assombra no filme sobre o sobrevivente de pólio que resolve iniciar a vida sexual
Do momento em que contraiu poliomielite, aos 6 anos, até o dia em que morreu, aos 49, o poeta e jornalista Mark O'Brien nunca pôde passar mais do que três ou quatro horas seguidas fora de seu pulmão de aço - "depende de quanto eu esteja me divertindo", diz ele a uma de suas cuidadoras, com o senso de humor brincalhão que foi a marca tanto do personagem verídico quanto da estupenda interpretação que faz dele o ator John Hawkes em As Sessões (The Sessions, Estados Unidos, 2012).
Católico devotado mas inquieto, Mark, já trintão, pede ao padre que acabou de assumir sua paróquia conselhos sobre um assunto que o vem atormentando: sexo. Inteiramente paralisado (à exceção de um músculo no pé, outro no pescoço e outro ainda no maxilar), mas não privado de sensação, Mark vem tendo animados diálogos, por assim dizer, com seu pênis. Vez por outra, inclusive, este trava conversas inesperadas com as cuidadoras durante o banho de esponja, para profundo constrangimento do paciente.
O que Mark quer saber do padre, interpretado com medidas iguais de empatia e de perplexidade espiritual por Willian H. Macy, é se seria pecado ele perder a virgindade fora do casamento. O padre olha para Cristo na cruz, em busca de inspiração, e opina: é quase certo que Deus deixe essa passar. E assim começa a epopeia de Mark no campo da intimidade física - tanto mais instigante porque, sob a direção do australiano Ben Lewin, ela contém todos os obstáculos específicos a uma pessoa com graves limitações; mas, ao mesmo tempo, é a imagem posta a nu, literalmente, das coisas que se passam com qualquer homem ou mulher quando estes se despem diante de outra pessoa e a enfrentam sem contar com nada além do próprio corpo e daquilo que são.
Sem namorada (não por falta de tentativa), Mark contrata os serviços de uma terapeuta sexual especializada em deficientes físicos. No primeiro encontro, enquanto tira a roupa, Cheryl Cohen Greene (Helen Hunt) explica que não é uma prostituta; trabalha por um máximo de seis sessões com cada cliente, ou menos, se o objetivo for atingido antes. O objetivo, no caso, sendo o sexo plenamente realizado - algo que, no decorrer da breve convivência entre Mark e Cheryl, deixará de ter sentido técnico para ganhar uma dimensão que pega a terapeuta de surpresa: é ela, não ele, a pessoa mais poderosamente arrebatada pela emoção da intimidade.
"O que se costuma esperar dos deficientes nos filmes é que eles sejam quase que super-heróis e façam coisas extraordinárias. Mark, porém, quando o vemos, já domou todos os aspectos necessários à sobrevivência e à superação; o que ele quer fazer, agora, é a coisa mais comum de todas - ter um vida sexual", resumiu a VEJA o diretor Ben Lewin, que tem 66 anos e é ele próprio um sobrevivente de poliomielite. Ágil com as muletas, Lewin passou um breve período da infância na dependência de um pulmão de aço, durante sua convalescença. Mas acredita que não foi esse o aspecto de sua experiência pessoal que mais o ligou ao personagem: "Esse misto de vergonha e desejo - isso é algo que um portador de deficiência provavelmente conhecerá bem. E um sentimento com o qual, feitas as contas, qualquer indivíduo tem boas chances de se identificar".
Diz a máxima que metade do trabalho de um diretor é escolher seu elenco; se cumprir bem essa tarefa, o resto virá fácil. "Metade é uma estimativa conservadora. Eu colocaria essa fração em pelo menos 80%", brinca Lewin, que, como boa parte do público, aliás, tinha noções não mais do que vagas sobre quem era John Hawkes quando a diretora de elenco sugeriu seu nome. Apavorante como o caipira Teardrop de Inverno da Alma (pelo qual foi indicado ao Oscar há dois anos), enternecedoramente tímido como o comerciante Sol da série Deadwood ou apaixonante como um vendedor de sapatos (por estranho que isso soe) em Eu, Você e Todos Nós, Hawkes faz meia dúzia ou mais filmes por ano e é um ator cuja versatilidade trabalhar a favor de sua reputação - mas contra sua fama. Em As Sessões, tudo que o filme quer ser, e é, se assenta sobre seu desempenho (muito embora o ator inexplicavelmente não tenha sido indicado ao Oscar; esse privilégio ficou só com Helen Hunt). Irretocável nas minúcias físicas, o trabalho de Hawkes é grandioso, entretanto, porque faz com que, a certa altura, as restrições de seu corpo percam o peso que têm de início: é só Mark O'Brien, com seu humor, seu dom para o flerte e sua inteligência, quem conta. Eis, enfim, um filme em que a doença determina a vida do personagem - mas não define quem ele é.
(texto escrito por Isabel Boscov e publicado na revista Veja nº 2309 - fevereiro 2013)
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