Ela não tem nada a ver com religião e pode estar presente no nosso dia a dia inclusive em tarefas corriqueiras, como caminhar e mesmo lavar a louça
Homenagem ao Dalai Lama. Esse é o tipo de convite que me dá prazer. É certamente uma palestra que pode me ajudar a escrever a matéria para a VIDA SIMPLES: como trazer a espiritualidade para o cotidiano. Chego cedo, deixo a bolsa sobre a cadeira na primeira fila e vou falar com prováveis entrevistados. Na volta, uma surpresa: uma das senhoras encarregadas de acomodar as pessoas me manda mudar de lugar. Pergunto para onde e ela me aponta o resto da plateia.
Se há algo que me coloca fora de mim é alguém tentar dificultar meu trabalho. Vi um vulcão prestes a entrar em erupção no meu peito. Ou eu aplicava os recursos a que os mestres se referem diante daquele momento, ou poderia pegar minha trouxinha e ir embora. Preferi ir para o fundo do auditório. Não sei até que ponto você é capaz de testemunhar seu próprio ataque de fúria. Mas eu estava tentando fazer isso. Depois de ter o sangue inundado pela adrenalina, o monólogo dos pensamentos dispara. Para sair daquele estado, comecei a desenhar flores de lótus. Depois de alguns minutos, consegui entrar no segundo estágio pós-ataque de raiva: as questões práticas.
Como poderia gravar a palestra lá do fundo? Assim, das colocações emocionais, passei para as racionais. Bom sinal. Com mais distanciamento, ficava mais fácil me separar do furacão interno. Mesmo com dificuldade, procurava aplicar no cotidiano o que aprendi em grupos espirituais: a me separar da emoção. Mais calma, fui pedir para acrescentar algumas cadeiras na frente. Restringi o pedido ao que era preciso para trabalhar em paz. e fiquei contente por ter achado a medida justa: nem ficar me remoendo nem responder ao descaso ao meu trabalho. Apenas o justo e adequado.
Alcançar esse equilíbrio diante de uma situação de confronto é um aprendizado. Os budistas falam que para que isso possa ocorrer devemos cultivar e praticar as seis paramitas, ou seis qualidades espirituais que levam a espiritualidade para o campo da ação: generosidade, empenho, tolerância, perseverança, discernimento e sabedoria. As seis representam o que mais queremos dos outros: acolhimento, afeto, respeito e muita paciência com nossos defeitos. É um treino para toda a vida, mas com o tempo ele se torna mais natural. Afinal, é mais simples fazer aquilo que queremos que façam a nós. O cristianismo traduz isso na frase: "Amar ao próximo como a ti mesmo".
Meditação em ação
Um grande mestre, Chögyam Trungpa, que escreveu o livro Meditação na Ação, conta que Buda dizia que o agricultor sábio aproveita os dejetos, isto é, tudo aquilo que é indesejável, para transformar em adubo. Em vez de negar que temos emoções negativas, é bom vê-las se manifestar para que possamos transformá-las. E esse já é um grande treino para aplicar a espiritualidade no dia a dia: aprender a separá-las de nós, sem nos identificarmos tanto com elas e, com base nisso, nos tornar mais generosos. "Os inexperientes dirão: aquilo é sujo, aquilo é limpo, aquilo é Samsara, aquilo é Nirvana. Porém os mais experientes aproveitarão tudo: não jogarão fora os desejos, as paixões e todo o resto, mas os ajuntarão à sua vida da maneira correta. Eles vão utilizá-los como adubo para sua realização espiritual", diz Trungpa. Em outras palavras, são as emoções negativas que têm a possibilidade de aumentar nossa capacidade de sermos tolerantes, abertos e muito maiores do que nós mesmos. Sem elas, ficaríamos estagnados nos estreitos limites do ego.
A meditação é outra prática que nos ensina a despregar da turbulência emocional, a observá-la de outro ponto dentro da mente. Treinando a meditação, fica mais fácil ver pensamentos e emoções com certa distância, embora eles continuem a se manifestar. Passamos a enxergar a turbulência como nuvens em céu azul e aberto, que chegam e se vão. É uma libertação. O passo seguinte é aplicar isso na vida diária.
Nesse campo, teoria e prática são a mesma coisa. Portanto, temos de nos abrir para enxergar o que se passa dentro de nós, e não apenas sermos passivos e nos render ao domínio das emoções e dos pensamentos. E alguns bons mestres nos auxiliam a fazer isso. Oba.
Um bom achado
Lama Rinchen, monge que representa no Brasil a escola Sakya, uma das quatro grandes linhagens do budismo tibetano, coloca em perspectiva todo o que havia vivenciado e revela qual é o principal dessa história. "A espiritualidade no cotidiano é sobretudo uma espiritualidade relacional: está ligada com aquilo que nós sentimos e com o modo como nos relacionamos com as pessoas", diz. E é claro que essa maneira é influenciada pelo jeito com que olhamos a vida. "Os antigos gregos, por exemplo, encaravam a ética como a maneira de transpor sua prática espiritual para o cotidiano. As qualidades humanas, como eram chamadas na época, eram consideradas como a dimensão prática da espiritualidade", afirma. "Com o correr dos séculos, isso se perdeu, e a ética e os valores humanos hoje são considerados como instâncias separadas da vida espiritual. Mas na verdade eles são a expressão direta da espiritualidade no mundo."
Somos espirituais também quando somos éticos, quando não cedemos ao egoísmo e valorizamos qualidades como respeito e lealdade. "Todos nós somos seres espirituais, independentemente da religião que professamos ou da fé que temos. Espiritualidade não é igual a religiosidade. Essa é uma grande confusão", diz Rinchen.
Louça suja
A imaginação é muito usada nas práticas espirituais do Oriente. Se você está lavando louça, por exemplo, por que não imaginar também que está lavando um sentimento ruim? Se estiver regando plantas, por que não visualizar que está nutrindo de amor o coração ressequido de alguém? O monge vietnamita Thich Nat Han sugere que ao caminhar imaginemos que sob os nossos pés nasçam flores de lótus, símbolos de amor e pureza. "Podemos modificar um estado negativo mantendo por um tempo essas imagens inspiradoras", diz a professora de ioga Alda Biggi.
Outra maneira de empregar a imaginação é fazer um exercício espiritual chamado tonglen na tradição budista: depois de uma breve meditação de olhos fechados e em silêncio, imaginamos absorver no coração o sofrimento de alguém, durante a inspiração. Na expiração, enviamos luz e amor para ele. "Acontece uma alquimia em nosso coração. O sofrimento é transformado em amor, alegria. Podemos enviar na imaginação tudo o que a pessoa pode estar precisando, mesmo se for um refrescante suco de laranja", escreveu a monja budista Pema Chödron. Essa meditação pode ser feita de dia, no ônibus.
No dia a dia
Um livro saboroso, Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, conta exatamente as dificuldades de um monge americano, Jack Kornfeld, que se vê obrigado a enfrentar a vida nos Estados Unidos depois de passar vários anos como monge nas florestas da Tailândia em imersão espiritual. Cheio de pequenas histórias e escrito com bom humor, o autor fala de suas dificuldades cotidianas, que também traduzem nossos próprios obstáculos para vivenciar uma espiritualidade prática. Para vivê-la, é preciso se basear em um ponto fundamental: na vida, tudo faz parte de um todo indivisível e sagrado. "Acreditamos, por exemplo, que o corpo - os relacionamentos, o planejamento do futuro, o dinheiro, a sexualidade, a família, a comunidade ou política - é algo 'não espiritual', perigoso, uma cilada. Esse medo ergue muros, isola o coração e divide o mundo em partes sagradas e partes que não são sagradas", escreveu ele. Portanto, é sábio incluir tudo como sagrado: corpo, plantas, amigos e inimigos, experiências agradáveis ou não e nosso inconsciente. "No coração maduro, desponta uma perfeição mais profunda, que não é oposta às coisas deste mundo, mas as que abrange na compaixão. Voltada para a misericórdia, a vida espiritual abandona as lutas do eu, as batalhas com o ego e com o pecado. A canção passa a ser feita de um amor corajoso por toda a criação, sem nada excluir", diz ele. Os problemas, desafios e venenos da vida se transformam em nossos professores.
Alcançar esse equilíbrio diante de uma situação de confronto é um aprendizado. Os budistas falam que para que isso possa ocorrer devemos cultivar e praticar as seis paramitas, ou seis qualidades espirituais que levam a espiritualidade para o campo da ação: generosidade, empenho, tolerância, perseverança, discernimento e sabedoria. As seis representam o que mais queremos dos outros: acolhimento, afeto, respeito e muita paciência com nossos defeitos. É um treino para toda a vida, mas com o tempo ele se torna mais natural. Afinal, é mais simples fazer aquilo que queremos que façam a nós. O cristianismo traduz isso na frase: "Amar ao próximo como a ti mesmo".
Meditação em ação
Um grande mestre, Chögyam Trungpa, que escreveu o livro Meditação na Ação, conta que Buda dizia que o agricultor sábio aproveita os dejetos, isto é, tudo aquilo que é indesejável, para transformar em adubo. Em vez de negar que temos emoções negativas, é bom vê-las se manifestar para que possamos transformá-las. E esse já é um grande treino para aplicar a espiritualidade no dia a dia: aprender a separá-las de nós, sem nos identificarmos tanto com elas e, com base nisso, nos tornar mais generosos. "Os inexperientes dirão: aquilo é sujo, aquilo é limpo, aquilo é Samsara, aquilo é Nirvana. Porém os mais experientes aproveitarão tudo: não jogarão fora os desejos, as paixões e todo o resto, mas os ajuntarão à sua vida da maneira correta. Eles vão utilizá-los como adubo para sua realização espiritual", diz Trungpa. Em outras palavras, são as emoções negativas que têm a possibilidade de aumentar nossa capacidade de sermos tolerantes, abertos e muito maiores do que nós mesmos. Sem elas, ficaríamos estagnados nos estreitos limites do ego.
A meditação é outra prática que nos ensina a despregar da turbulência emocional, a observá-la de outro ponto dentro da mente. Treinando a meditação, fica mais fácil ver pensamentos e emoções com certa distância, embora eles continuem a se manifestar. Passamos a enxergar a turbulência como nuvens em céu azul e aberto, que chegam e se vão. É uma libertação. O passo seguinte é aplicar isso na vida diária.
Nesse campo, teoria e prática são a mesma coisa. Portanto, temos de nos abrir para enxergar o que se passa dentro de nós, e não apenas sermos passivos e nos render ao domínio das emoções e dos pensamentos. E alguns bons mestres nos auxiliam a fazer isso. Oba.
Um bom achado
Lama Rinchen, monge que representa no Brasil a escola Sakya, uma das quatro grandes linhagens do budismo tibetano, coloca em perspectiva todo o que havia vivenciado e revela qual é o principal dessa história. "A espiritualidade no cotidiano é sobretudo uma espiritualidade relacional: está ligada com aquilo que nós sentimos e com o modo como nos relacionamos com as pessoas", diz. E é claro que essa maneira é influenciada pelo jeito com que olhamos a vida. "Os antigos gregos, por exemplo, encaravam a ética como a maneira de transpor sua prática espiritual para o cotidiano. As qualidades humanas, como eram chamadas na época, eram consideradas como a dimensão prática da espiritualidade", afirma. "Com o correr dos séculos, isso se perdeu, e a ética e os valores humanos hoje são considerados como instâncias separadas da vida espiritual. Mas na verdade eles são a expressão direta da espiritualidade no mundo."
Somos espirituais também quando somos éticos, quando não cedemos ao egoísmo e valorizamos qualidades como respeito e lealdade. "Todos nós somos seres espirituais, independentemente da religião que professamos ou da fé que temos. Espiritualidade não é igual a religiosidade. Essa é uma grande confusão", diz Rinchen.
Louça suja
A imaginação é muito usada nas práticas espirituais do Oriente. Se você está lavando louça, por exemplo, por que não imaginar também que está lavando um sentimento ruim? Se estiver regando plantas, por que não visualizar que está nutrindo de amor o coração ressequido de alguém? O monge vietnamita Thich Nat Han sugere que ao caminhar imaginemos que sob os nossos pés nasçam flores de lótus, símbolos de amor e pureza. "Podemos modificar um estado negativo mantendo por um tempo essas imagens inspiradoras", diz a professora de ioga Alda Biggi.
Outra maneira de empregar a imaginação é fazer um exercício espiritual chamado tonglen na tradição budista: depois de uma breve meditação de olhos fechados e em silêncio, imaginamos absorver no coração o sofrimento de alguém, durante a inspiração. Na expiração, enviamos luz e amor para ele. "Acontece uma alquimia em nosso coração. O sofrimento é transformado em amor, alegria. Podemos enviar na imaginação tudo o que a pessoa pode estar precisando, mesmo se for um refrescante suco de laranja", escreveu a monja budista Pema Chödron. Essa meditação pode ser feita de dia, no ônibus.
No dia a dia
Um livro saboroso, Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, conta exatamente as dificuldades de um monge americano, Jack Kornfeld, que se vê obrigado a enfrentar a vida nos Estados Unidos depois de passar vários anos como monge nas florestas da Tailândia em imersão espiritual. Cheio de pequenas histórias e escrito com bom humor, o autor fala de suas dificuldades cotidianas, que também traduzem nossos próprios obstáculos para vivenciar uma espiritualidade prática. Para vivê-la, é preciso se basear em um ponto fundamental: na vida, tudo faz parte de um todo indivisível e sagrado. "Acreditamos, por exemplo, que o corpo - os relacionamentos, o planejamento do futuro, o dinheiro, a sexualidade, a família, a comunidade ou política - é algo 'não espiritual', perigoso, uma cilada. Esse medo ergue muros, isola o coração e divide o mundo em partes sagradas e partes que não são sagradas", escreveu ele. Portanto, é sábio incluir tudo como sagrado: corpo, plantas, amigos e inimigos, experiências agradáveis ou não e nosso inconsciente. "No coração maduro, desponta uma perfeição mais profunda, que não é oposta às coisas deste mundo, mas as que abrange na compaixão. Voltada para a misericórdia, a vida espiritual abandona as lutas do eu, as batalhas com o ego e com o pecado. A canção passa a ser feita de um amor corajoso por toda a criação, sem nada excluir", diz ele. Os problemas, desafios e venenos da vida se transformam em nossos professores.
(texto publicado na revista Vida Simples nº 116 - março 2012)
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