A devastadora experiência de se ver diante da morte de filhos, cônjuges e outros entes queridos ganha um aliado para superá-la: o compartilhamento da dor nas redes sociais
Ninguém ouviu quando o telefone fixo tocou no meio da sala. Eram quase 5 da madrugada de um dia que, reza a tradição, precede uma noite feliz: 24 de dezembro. Depois de um breve silêncio tomou conta da casa de novo, o celular do médico Wladimir Taborda, hoje com 57 anos, soou à sua cabeceira. Ele atendeu. Do lado de lá da linha, uma mulher avisava que Gabriel, seu enteado e filho do meio da jornalista Cynthia de Almeida, 60, tinha batido o carro. "Iel", como era chamado pelos mais próximos, saíra poucas horas antes, após reunir os amigos para ensaiar músicas que tocaria na festa de Natal. Aos 20 anos, havia acabado de passar no vestibular para publicidade. Wladimir pediu para falar com o rapaz. A desconhecida, uma paramédica do Samu, respondeu que não era possível, mas ele dissimulou sua preocupação.
Imaginando que o marido sairia apenas para ajudar o filho a resolver problemas burocráticos, Cynthia voltou a dormir assim que o médico deixou a residência da família - no Morumbi, Zona Sul de São Paulo, rumo à Zona Oeste da capital, onde tinha ocorrido o acidente -, seguindo a orientação da paramédica. "Nem de longe pensei que meu filho pudesse estar machucado, que algo de mais grave pudesse ter acontecido", relembra a jornalista, que, naquela véspera de Natal de 2001, despertou instantes depois, estranhando a falta de notícias. Telefonou uma, duas, três, quatro vezes para o marido. Quando a ligação pareceu se completar, "só ouvi vozes ao longe e um som que interpretei como risadas. Pensei: estão se divertindo e nem lembraram de me tranquilizar!", conta Cynthia, que até hoje não consegue esclarecer a confusão daquele momento. Ela insistiu, e Wladimir, que convivia com Gabriel desde que ele tinha 5 anos de idade, enfim, atendeu. Chorando. Diz a jornalista: "Ficou tudo claro naquele centésimo de segundo. Nada o faria chorar senão a morte do Iel. Mesmo que a situação fosse de extrema gravidade, ele, por ser médico, estaria envolvido no processo para tentar salvá-lo. Chorar, Wladimir só faria diante da irreversabilidade da morte". Atônita, incrédula, Cynthia se viu na dolorosa contingência de ter de avisar o pai do rapaz, seus irmãos, avós. Não, aquele dia não teria uma noite feliz.
Evidentemente, não é possível ranquear, numa escala de dores, o sofrimento provocado pela morte de alguém. Contudo, alguns estudiosos ratificam a ideia disseminada pelo senso comum de que a mais irremediável das perdas seja a de um filho. O psicólogo inglês John Archer, professor da Universidade Central de Lancashire e autor do livro The Nature of Grief: The Evolution and Psychology of Reactions to Loss (A Natureza da Dor: Evolução e Psicologia das Reações à Perda), de 1999, arrisca uma explicação: a força de um vínculo e a intensidade e duração do luto resultantes do laço interrompido são proporcionais ao grau de envolvimento genético que se tem com aquele que partiu. Para Archer, quando se perde um filho, perde-se a "imortalidade genética"; em outras palavras, a possibilidade de a vida, em alguma medida, continuar a existir.
Suportar essa perda inominável, que produz "órfãos" às avessas - "Não há palavra para definir os pais que perdem um filho, e não só em português", atesta o gramático e filólogo Evanildo Bechara -, tem se mostrado, cada vez mais, uma tarefa levada a cabo por meio do compartilhando das feridas. É algo que a era digital vem facilitando de maneira notável, em especial por meio de sites especializados e das redes sociais. "A cultura ocidental oferece poucas alternativas de suporte ao processo do luto, e muitas pessoas estão recorrendo à internet para vivenciar seus sentimentos diante da morte de entes queridos", diz Regina Szylit, professora de enfermagem na Universidade de São Paulo e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas e Luto. Em um recente levantamento feito por ela e sua equipe, e obtido em primeira mão por VEJA, os pesquisadores concluíram que a maior parte dos blogs dedicados ao luto era feita por mães que perderam seus filhos. Em um dos depoimentos colhidos pelo núcleo, uma delas declarou: "Na vida off-line, todos tratam a nossa dor de forma fria. Ficam incomodados quando começamos a falar, criam um distanciamento e constrangem os enlutados. Já no mundo on-line, a dor não pode ser calada. E lerá quem quiser".
Pode parecer contraditório que um ambiente marcado pela difusão de momentos de alegria e descontração seja receptivo à temática da morte, mas pesquisadores da Universidade de Washington, em mais um recente estudo sobre o tema, concluíram que as redes sociais estão fomentando o debate sobre o luto justamente por tirá-lo da esfera privada e torná-lo público. A demanda por ler e falar sobre o assunto na web também fica evidente diante dos números do site brasileiro Vamos Falar sobre o Luto?. Criado há apenas seis meses por cinco publicitárias e duas jornalistas - uma delas, Cynthia de Almeida, de quem se falou no início desse texto -, com o objetivo comum de disponibilizar uma plataforma de informação, inspiração e conforto para os enlutados e ex-enlutados de toda espécie, o endereço vamosfalarsobreluto.com.br já soma 1 milhão de unique visitors. Logo na estréia, foram 100.000 visualizações. A cada mês o site recebe cerca de 100 histórias sobre a morte de alguém próximo. "Apesar de o acidente com meu filho ter acontecido há quase quinze anos, por causa do projeto estou sempre falando do Gabriel, e as memórias que tenho dele estão mais vivas do que nunca", afirma Cynthia. Não é que durante todo aquele tempo a jornalista tivesse guardado só para si as lembranças de Iel: desde que ele encontrou a morte ao perder a direção naquela madrugada de 2001, familiares e amigos se reúnem perto da data de seu aniversário para celebrar a vida que o jovem teve. Todavia, com o Vamos Falar sobre o Luto?, essa possibilidade se alargou e, mais do que isso, a fez chegar a outras pessoas que passaram por trauma semelhante.
Não existem dados estatísticos sobre sites voltados a esse propósito, mas o Vamos Falar sobre o Luto? não é uma iniciativa isolada. Em junho, o empresário Roberto Dhelomme criou o Etternum, um serviço virtual de homenagens póstumas. Lá, o usuário cria um perfil da pessoa que partiu e convida os mais próximos a colaborar com textos, fotos e vídeos. É como uma rede social acessível apenas a convidados. No Brasil, há ainda o 4estacoes.com, criado por psicólogas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a intenção de provocar uma mudança na forma como a sociedade encara o luto. Em inglês, o site modernloss.com trata do assunto com delicadeza e até com um toque de humor. Feito por duas jovens americanas que perderam os pais, traz orientações para quem acaba de perder um ente querido. É possível encontrar, também em inglês, endereços dedicados exclusivamente a reunir lembranças daqueles que se foram para sempre. No americano Memoires.com, o usuário abre uma página em que pode contar a história da pessoa que morreu, deixar fotos e vídeos. Há a opção de compartilhar ou não o material.
Desde 2015, seguindo a tendência de abordar a morte de parentes e amigos no circuito digital, o Facebook oferece a seus usuários a possibilidade de eleger um "herdeiro de conta". A página da pessoa falecida se torna um memorial - e o herdeiro passa a administrá-la. Nesse caso, a expressão "Em memória de" surge ao lado do nome do titular original da conta e o conteúdo compartilhado em vida por ele permanece disponível aos seus contatos. SE nenhum herdeiro é indicado, a empresa dá duas opções aos familiares: deletar a conta ou transformá-la em memorial, se a alternativa de eleger um administrador.
O luto, deve-se sublinhar, não é um doença. Sendo assim, não tem um conjunto de sintomas que gradualmente vão se desvanecendo. E não existe, claro, uma receita para atravessá-lo, até porque a morte não tem o mesmo significado em todas as culturas. Religiões asiáticas como o hinduísmo e o budismo, conhecidas por lidar com a morte de maneira menos amargurada, consideram-na um período de renovação, de preparação para a reencarnação. Segundo o budismo, ela não marca o fim da existência, apenas o fim do corpo que tivemos nesta vida. Na mesma linha, o espiritismo entende o "morrer" como "desencarnar". Em Luto e Melancolia (1917), o austríaco Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, define o "trabalho do luto" como um "teste da realidade", capaz de revelar que o objeto amado não existe mais, e a demandar que toda a "libido" - "energia", no contexto usado pelo pensador - seja retirada das ligações com o referido objeto. Escreveu Freud: "Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia, prolongando-se psiquicamente, nesse período, a existência do objeto perdido".
Alguns especialistas, é verdade, chegam a identificar fases - negação, raiva, angústia, aceitação - que, entretanto, não precisam necessariamente se suceder. Há também quem divida os enlutados em dois grupos: o instrumental e o intuitivo. O primeiro grupo, associado com maior frequência aos homens, reúne indivíduos que não falam abertamente sobre suas emoções e expressam o luto por meio de ações como, por exemplo, fundar uma ONG. Já o segundo, relacionado na maioria das vezes às mulheres, aproxima pessoas que falam a respeito de suas perdas e demonstram em público seus sentimentos. "Não há nada de errado em não querer compartilhar o luto na internet ou mesmo com os mais próximos. No entanto, se precisasse dar um único conselho a pais que perderam seus filhos, eu diria a eles que não negligenciassem a comunicação", ressalta, do alto de seus 88 anos de idade, o psiquiatra inglês Colin Murray Parkes, um dos mais respeitados pesquisadores do luto em atividade no mundo. Em seu livro Amor e Perda (2006), Parkes menciona um estudo que apontou um dado revelador: um terço dos casais que perderam o filho subitamente paassou a ter problemas conjugais. "Falar das diferenças de como vivenciam e expressam sua dor ajuda os membros da família a ser mais pacientes e compreensivos uns com os outros, e evita que sejam mal interpretados", esclarece a psicóloga Heather Servaty-Seib, professora de tanatologia na Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. O casal Fernando Pfister e Verônica Dutra constatou isso na prática. Ao perderem os quatro filhos, em 2011, marido e mulher chegaram a pensar em suicídio. Testemunha Pfister: "É importante superar por completo uma tragédia como essa, mas, se ela não tivesse me dado apoio e vice-versa, seria ainda pior. Hoje, podemos dizer que voltamos a viver momentos de alegria".
Em mais de cinco décadas dedicadas à pesquisa do luto, Colin Murray Parkes identificou que a idade e a expectativa de mortalidade infantil influenciam o modo como os pais encaram a perda de um filho. "Uma ligação crucial se estabelece após o nascimento do bebê e cresce no curso dos próximos dois anos", observa. "Não estou afirmando que as mortes antes desse período não possam ser traumáticas, porém as estatísticas mostram que o risco de um luto se tornar problemático aumenta conforme a criança cresce." Por outro lado, em regiões onde as taxas de mortalidade infantil são altas, constata-se uma condescendência maior dos pais. "Lembro-me de uma mãe do Nordeste brasileiro que, ao saber que o filho recém-nascido tinha sucumbido, declarou: "Era só um bebê", narra Parkes. O pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) corrobora a teoria do psiquiatra britânico. Em um de seus Ensaios (1580), escrito pouco tempo depois de encerrada a Idade Média, refletiu: "Perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero". Foi somente no mundo moderno - e nas sociedades mais desenvolvidas - que a morte de uma criança passou a se tornar menos corriqueira. E com a ampliação do número de famílias menores, um traço marcante da contemporaneidade, o vínculo entre pais e filhos estreitou.
Até há bem pouco tempo, bebês natimortos raramente eram apresentados a seus genitores. Isso trazia uma consequência irreparável: o casal não guardava um registro concreto da imagem do filho. Uma prova da mudança radical nesse cenário é a ONG americana Now I Lay me Down to Sleep (Agora Eu me Deito para Dormir). Fundada em 2005, ela reúne 1 700 fotógrafos em quarenta países - o Brasil ainda não está na lista - treinados para registrar bebês que nascem mortos ou vivem poucos dias. Consta que retratar "anjinhos", como se costuma chamar as crianças mortas, não era algo estranho em Itabira (MG). Ainda assim , o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) desaprovou a foto feita de seu filho Carlos Flavio, que morreu trinta minutos após o nascimento. Quando Carlos Flavio veio ao mundo, em 1927, a cada 1 000 bebês nascidos vivos, 162 morriam - hoje são catorze. A expectativa de vida era de apenas 36 anos, contra os atuais 75. A morte era mais presente, mas não deixava de se associar ao sofrimento. No século XVII, a Inglaterra relacionava óbitos que considerava ter o luto como causa. O médico americano Benjamin Rush (1746-1813), signatário da Declaração da Independência, anotou em uma de suas obras que pessoas mortas quando ainda se encontravam enlutadas mostravam "congestão e inflamação do coração, com ruptura nos aurículos e ventrículos".
Sabe-se hoje que quem perde uma pessoa próxima fica mais exposto a doenças, especialmente as cardíacas, contudo o luto não é considerado causa de morte. No caso de pais que perderam um filho, o "teste de realidade" a que se referia Freud precisa ser "trabalhado" para que eles consigam redefinir suas vidas sem a presença do herdeiro que se foi. Drummond não conseguiu. Submetido, pela segunda vez, a esse incomensurável sofrimento, ao ver a única filha, Julieta, de 59 anos, partir para sempre, o poeta se entregou: morreu doze dias depois dela, em 17 de outubro de 1987. O publicitário Paulo Camossa, que perdeu a filha Amanda em 2008, quando ela estava com apenas 18 anos, encontrou forças para resistir ao teste e admitir a realidade: "No início, parece que a dor nunca vai passar, mas um dia você acorda e o primeiro pensamento não é mais a sua filha, embora as lembranças dela venham à mente em muitos outros momentos. É possível, então, viver em paz, porque a partida não pode ser maior que o tempo que passamos juntos". Há algo de esperançoso em pensar que a retomada da vida pelos pais seja uma forma de vencer a morte de um filho. É como dar a ele uma, por assim dizer, "imortalidade genética". Dar vida a um filho: não é isso mesmo que, por definição, cabe aos pais?
O luto, deve-se sublinhar, não é um doença. Sendo assim, não tem um conjunto de sintomas que gradualmente vão se desvanecendo. E não existe, claro, uma receita para atravessá-lo, até porque a morte não tem o mesmo significado em todas as culturas. Religiões asiáticas como o hinduísmo e o budismo, conhecidas por lidar com a morte de maneira menos amargurada, consideram-na um período de renovação, de preparação para a reencarnação. Segundo o budismo, ela não marca o fim da existência, apenas o fim do corpo que tivemos nesta vida. Na mesma linha, o espiritismo entende o "morrer" como "desencarnar". Em Luto e Melancolia (1917), o austríaco Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, define o "trabalho do luto" como um "teste da realidade", capaz de revelar que o objeto amado não existe mais, e a demandar que toda a "libido" - "energia", no contexto usado pelo pensador - seja retirada das ligações com o referido objeto. Escreveu Freud: "Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia, prolongando-se psiquicamente, nesse período, a existência do objeto perdido".
Alguns especialistas, é verdade, chegam a identificar fases - negação, raiva, angústia, aceitação - que, entretanto, não precisam necessariamente se suceder. Há também quem divida os enlutados em dois grupos: o instrumental e o intuitivo. O primeiro grupo, associado com maior frequência aos homens, reúne indivíduos que não falam abertamente sobre suas emoções e expressam o luto por meio de ações como, por exemplo, fundar uma ONG. Já o segundo, relacionado na maioria das vezes às mulheres, aproxima pessoas que falam a respeito de suas perdas e demonstram em público seus sentimentos. "Não há nada de errado em não querer compartilhar o luto na internet ou mesmo com os mais próximos. No entanto, se precisasse dar um único conselho a pais que perderam seus filhos, eu diria a eles que não negligenciassem a comunicação", ressalta, do alto de seus 88 anos de idade, o psiquiatra inglês Colin Murray Parkes, um dos mais respeitados pesquisadores do luto em atividade no mundo. Em seu livro Amor e Perda (2006), Parkes menciona um estudo que apontou um dado revelador: um terço dos casais que perderam o filho subitamente paassou a ter problemas conjugais. "Falar das diferenças de como vivenciam e expressam sua dor ajuda os membros da família a ser mais pacientes e compreensivos uns com os outros, e evita que sejam mal interpretados", esclarece a psicóloga Heather Servaty-Seib, professora de tanatologia na Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. O casal Fernando Pfister e Verônica Dutra constatou isso na prática. Ao perderem os quatro filhos, em 2011, marido e mulher chegaram a pensar em suicídio. Testemunha Pfister: "É importante superar por completo uma tragédia como essa, mas, se ela não tivesse me dado apoio e vice-versa, seria ainda pior. Hoje, podemos dizer que voltamos a viver momentos de alegria".
Em mais de cinco décadas dedicadas à pesquisa do luto, Colin Murray Parkes identificou que a idade e a expectativa de mortalidade infantil influenciam o modo como os pais encaram a perda de um filho. "Uma ligação crucial se estabelece após o nascimento do bebê e cresce no curso dos próximos dois anos", observa. "Não estou afirmando que as mortes antes desse período não possam ser traumáticas, porém as estatísticas mostram que o risco de um luto se tornar problemático aumenta conforme a criança cresce." Por outro lado, em regiões onde as taxas de mortalidade infantil são altas, constata-se uma condescendência maior dos pais. "Lembro-me de uma mãe do Nordeste brasileiro que, ao saber que o filho recém-nascido tinha sucumbido, declarou: "Era só um bebê", narra Parkes. O pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) corrobora a teoria do psiquiatra britânico. Em um de seus Ensaios (1580), escrito pouco tempo depois de encerrada a Idade Média, refletiu: "Perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero". Foi somente no mundo moderno - e nas sociedades mais desenvolvidas - que a morte de uma criança passou a se tornar menos corriqueira. E com a ampliação do número de famílias menores, um traço marcante da contemporaneidade, o vínculo entre pais e filhos estreitou.
Até há bem pouco tempo, bebês natimortos raramente eram apresentados a seus genitores. Isso trazia uma consequência irreparável: o casal não guardava um registro concreto da imagem do filho. Uma prova da mudança radical nesse cenário é a ONG americana Now I Lay me Down to Sleep (Agora Eu me Deito para Dormir). Fundada em 2005, ela reúne 1 700 fotógrafos em quarenta países - o Brasil ainda não está na lista - treinados para registrar bebês que nascem mortos ou vivem poucos dias. Consta que retratar "anjinhos", como se costuma chamar as crianças mortas, não era algo estranho em Itabira (MG). Ainda assim , o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) desaprovou a foto feita de seu filho Carlos Flavio, que morreu trinta minutos após o nascimento. Quando Carlos Flavio veio ao mundo, em 1927, a cada 1 000 bebês nascidos vivos, 162 morriam - hoje são catorze. A expectativa de vida era de apenas 36 anos, contra os atuais 75. A morte era mais presente, mas não deixava de se associar ao sofrimento. No século XVII, a Inglaterra relacionava óbitos que considerava ter o luto como causa. O médico americano Benjamin Rush (1746-1813), signatário da Declaração da Independência, anotou em uma de suas obras que pessoas mortas quando ainda se encontravam enlutadas mostravam "congestão e inflamação do coração, com ruptura nos aurículos e ventrículos".
Sabe-se hoje que quem perde uma pessoa próxima fica mais exposto a doenças, especialmente as cardíacas, contudo o luto não é considerado causa de morte. No caso de pais que perderam um filho, o "teste de realidade" a que se referia Freud precisa ser "trabalhado" para que eles consigam redefinir suas vidas sem a presença do herdeiro que se foi. Drummond não conseguiu. Submetido, pela segunda vez, a esse incomensurável sofrimento, ao ver a única filha, Julieta, de 59 anos, partir para sempre, o poeta se entregou: morreu doze dias depois dela, em 17 de outubro de 1987. O publicitário Paulo Camossa, que perdeu a filha Amanda em 2008, quando ela estava com apenas 18 anos, encontrou forças para resistir ao teste e admitir a realidade: "No início, parece que a dor nunca vai passar, mas um dia você acorda e o primeiro pensamento não é mais a sua filha, embora as lembranças dela venham à mente em muitos outros momentos. É possível, então, viver em paz, porque a partida não pode ser maior que o tempo que passamos juntos". Há algo de esperançoso em pensar que a retomada da vida pelos pais seja uma forma de vencer a morte de um filho. É como dar a ele uma, por assim dizer, "imortalidade genética". Dar vida a um filho: não é isso mesmo que, por definição, cabe aos pais?
(texto publicado na revista Veja edição 2500 - ano 49 - nº 42 - 19 de outubro de 2016)
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