O corretor automático do celular deve ter sido criado por uma velha fuxiqueira que quer ver briga
Você tem ideia do que é escrever uma novela? Não estou falando da parte glamourosa da vida de um escritor. Mas da labuta, da transpiração aliada à inspiração. São páginas e páginas por dia. Entro em uma espécie de transe. Mergulho na história. Certa vez um acupunturista me aconselhou a fazer algum tipo de alongamento a cada meia hora. Expliquei que é impossível. Esqueço. Começo a escrever. Quando vejo, o tempo passou. É um processo de entrega total. O mesmo acontece com meus livros, peças de teatro. Vou fundo.
Tudo seria perfeito se não fossem as atualizações automáticas. Estou escrevendo. De repente, vem um aviso. Dentro de 15 minutos meu computador será reiniciado por causa de uma atualização. Mas eu não posso reiniciar meu cérebro. Estou, como dizem os especialistas em produtividade, em “flow”, fluindo, vivendo minha nova história, a novela O outro lado do paraíso, que estreará na Globo em outubro. Portanto, não aceito. Ok. Dali a dois minutos volta o aviso. Vem e vem sem parar. Até que eu desisto, paro de trabalhar e espero atualizar e reiniciar. Imagine isso às 2, 3 da manhã. É o horário que costuma acontecer. Tranquilo, não? Quem inventou certamente é contra todos os escritores da face da Terra, que costumam trabalhar à noite. Mordo o teclado. É o que me resta. Se consigo evitar, quando durmo ele faz a atualização. No dia seguinte, o programa está diferente. Fico maluco até entender as mudanças. Mas aí, é claro, está na hora de nova atualização...
De todos os meus conhecidos, fui o primeiro a ter computador pessoal. Quando todo mundo ainda usava máquina de escrever. Passava horas decifrando programas, via mapas astrais, ouvia música, lia livros que só existem na internet. Escrevi minhas primeiras novelas nos primeiros computadores lançados no país, máquinas horrendas e lentas. Céus, sou do tempo do Orkut! Mas os programas mudaram. Atualizações e mais atualizações. Perdi o pé. Até em sites de compras me confundo. A Amazon brasileira, por exemplo. É tanta vontade deles de vender livro virtual que não consigo achar os físicos. Não sei mais baixar músicas. Não encontro música nenhuma. Depois de muitas atualizações, as bibliotecas virtuais tornaram-se atividade para iniciados.
Mas nem tudo está perdido.
Outro dia estava confuso no celular. Minha secretária do lar ofereceu ajuda. Explicou.
– Meu filhinho de 4 anos acha tudo!
Humilhação. O fato é que os mais novinhos também passaram por alguma atualização, que ainda não entendi.
Quem não odeia correção automática de texto em celular? Quem? Quem?
É um horror. O corretor automático me trai. Aposto que trai você também. Se digo que vou descansar, ele troca por desgastar, e de repente estou no meio de uma longa DR. Objetivo: descobrir por que a relação está desgastada. Explico que foi o corretor. Quem acredita? Uma amiga escreve que vai na TV. Explico que não estarei lá, trabalho em casa. Após um diálogo confuso, ela descobre que o corretor trocou “vi” por “vou”. Ela apenas viu um programa na TV e queria me indicar. Mas eu já fui grosso dizendo que não estaria lá. E ela entendeu que não me interessei pela dica que ela queria passar. Outro exemplo: Fui escrever “fala”. Mas botei um “l” a mais sem querer, “falla”. O corretor trocou por “Callado”, o dramaturgo, mas que lembra uma ordem impondo silêncio... quem leu, obviamente, não gostou muito. Fiquei um tempo tentando me explicar. Agora pouco quis escrever “importar”. Esqueci do “r” e foi “impotar”, ok. Mas o corretor tinha de trocar por “impotente”? Pronto, mais um amigo ofendidíssimo. O corretor automático de celular deve ter sido criado por uma velha fuxiqueira cujo maior objetivo é provocar rixas entre usuários de mensagens.
E correção em computador? Escrevo as falas de um personagem caipira. O corretor muda. Vou em cima, refaço. Nova correção. Depois, pontilhado vermelho embaixo de cada palavra considerada “errada”. Mas e se o personagem fala errado? Pronto, tiro as correções automáticas de texto. Acredite ou não, elas voltam, misteriosamente. Estão cravadas no interior do programa. Eu me debato. Quase choro.
Simplesmente queria saber: por que não posso voltar aos bons tempos em que podia usar um programa simples? Apenas adequado a minha principal atividade, que é escrever? Por que tenho de me tornar um expert em computador? Ixi, não posso continuar. Um aviso que meu antivírus está expirando insiste em piscar na minha tela. Fecho. Ele volta. Fecho. Ele volta. Socorro!
(texto publicado na revista Época - junho de 2017)
Nenhum comentário:
Postar um comentário