sábado, 2 de setembro de 2017

Orient Express, um trem na história - Véronique Dumas


Inaugurada em 1883, a lendária linha marcou uma nova fase na trajetória europeia e foi testemunha da arte de viver com pompa e das muitas perturbações que o continente conheceu no século passado

A simples menção ao trem de luxo que ligou Paris a Constantinopla (Istambul), de 1883 a 1977, faz brilhar os olhos dos viajantes. O Instituto do Mundo Árabe (IMA), em Paris, consagra-lhe, agora, uma exposição itinerante organizada com a colaboração da SNCF. A cenógrafa Clémence Farrell idealizou uma viagem que mergulha o público no universo sofisticado desse palácio sobre trilhos, cuja inauguração simbolizou a entrada da Europa numa nova fase do capitalismo industrial.

A aventura começa em Paris, no dia 4 de outubro de 1883. Uma multidão compacta se movimenta apressada nas plataformas da estação de Estrasburgo, a atual estação do Leste. Jornalistas, artistas, políticos e pessoas elegantes assistem à primeira partida da linha que será conhecida no mundo inteiro, a partir de 1891, sob o nome de Orient Express. Vinte e quatro viajantes - todos homens, aos quais se pediu que levassem consigo uma arma curta por medida de segurança - preparam-se para atravessar regiões longínquas. 

A primeira viagem: rumo a Istambul

Os cinco vagões desse trem inaugural rodam dia e noite para Bucareste. Mas que pena! Ele deve interromper a viagem por não ter obtido autorização para transpor o Danúbio. Entretanto, tudo fora previsto e a travessia se dá por meio de uma barcaça. Será assim até 1889. Os viajantes embarcam, em seguida, num trem especial em direção à Bulgária e depois, em Varna, nas imagens do mar Negro, sobem a bordo de um navio a vapor, o Espero, que os leva numa jornada de 15 horas ao Bósforo e à capital do Império Otomano.

O jornalista Edmond About, que participa da aventura, conta como, entre Budapeste e Timisoara, uma orquestra cigana surge do nada na sala de jantar e arrasta os passageiros numa valsa endiabrada. O tom está dado. Esse trem, que torna o Oriente acessível, abre as portas ao sonho e à imaginação. O périplo de mais de 3 mil quilômetros dura menos de quatro dias, numa época em que a ligação marítima Marselha-Istambul mais rápida levava 15 dias.

Essa proeza extraordinária é obra de um engenheiro belga, filho e neto de banqueiros, Georges Nagelsmackers (1845-1905). Empreendedor audacioso e visionário, ele trouxe de uma viagem aos Estados Unidos em 1867 um projeto ambicioso: criar na Europa o equivalente aos trens noturnos que atravessam a imensidão do continente americano, concebidos por um de seus homólogos além-Atlântico, George Pullman. Ele próprio experimentou esse meio de transporte e não hesitou em interrogar os clientes sobre suas impressões. As damas se queixaram da falta de intimidade dos vagões, onde os beliches eram separados apenas por cortinas. Nagelsmackers se lembraria desse pormenor e substituiria os tecidos por tabiques. Afinal, deseja que seus vagões-dormitório sejam revolucionários em questão de conforto, inclusive atravessando até mesmo as fronteiras sem que os passageiros precisem descer.

Um mesmo trem passando por várias nações. Para tanto, é preciso inventar vagões que possam ser acoplados às locomotivas das diferentes companhias ferroviárias, cujas normas variam de um país a outro. Mas os aspectos diplomático e financeiro do negócio se revelam os mais difíceis de transpor. Interrompido pela Guerra Franco-Prussiana de 1870, o projeto, sustentado pelo rei dos belgas, Leopoldo II, resulta, em 1872, na inauguração de uma primeira linha em vagões-dormitório entre Paris e Viena, e depois, no ano seguinte, entre Paris e Berlim. Entretanto, o empreendimento se mostrou deficitário, e os bancos retiraram seu apoio a Nagelsmackers. Em busca de financiamento, este encontra em Londres um coronel americano, William Mann, um rico inventor que possuía uma patente para um vagão-dormitório dotado de compartimentos que abriam para um corredor lateral. No final de 1876, Georges Nagelsmackers e seu sócio fundam a Compagnie internationale des Wagons-Lits et des Grands Express Européens. Desde 1885, o Paris-Viena torna-se parte do cenário europeu, conduzindo à capital austríaca a intelligentsia européia da época.

Em 1889, o ano da inauguração da Torre Eiffel para a Exposição Universal de Paris, a conclusão da linha garante aos passageiros, liberados das formalidades administrativas - a companhia apresenta, ela própria, os papéis em cada fronteira -, um trajeto em 67 horas e 46 minutos até Constantinopla, via Munique, Viena, Budapeste, Belgrado, Sófia e Bucareste. Das margens do Sena às do Bósforo, da França do presidente Carnot ao Império Otmano do sultão Abdulhamid II.

Nagelsmackers realiza seu sonho: unir o Ocidente e o Oriente. Mas pretende ir ainda mais longe. Em 1894, sua companhia abre vários hotéis de luxo nas principais paradas da linha, entre os quais o Pera Palace, em Constantinopla, construído em 1892 para acolher os viajantes do luxuoso trem.

No vagão-bar, espiões e aventureiras

O Orient Express torna-se imediatamente lenda. Recebe uma clientela muito especial: a fina flor e as celebridades da época cruzam no vagão-bar com moças aventureiras em busca de fortuna e espiões em missão. Além disso, em 1891, bandidos chegam a roubar 120 mil libras esterlinas dos passageiros. No ano seguinte, é uma epidemia de cólera a bordo que obriga os responsáveis pela companhia a pôr o trem em quarentena.

A dimensão dramatúrgica desse microcosmo sobre trilhos, respeitando a regra aristotélica das três unidades (lugar, tempo e ação), não escapa aos romancistas e aos cineastas, que se inspirarão nesse cenário único, de Agatha Christie (Assassinato no Expresso do Oriente, publicado em 1934) a Terence Young (com as aventuras de James Bond, em Moscou contra 007, que estreou em 1963), passando por Hitchcock (que assina o genial A dama oculta, em 1938).

No Orient Express, obra-prima do art nouveau e do art déco, tudo é luxo, calma e volúpia. Os tetos em couro ricamente trabalhados, os baixos-relevos em cristal Lalique, as tapeçarias Gobelins e as cortinas em veludo genovês se somam à prataria e às louças e cristais que ornam as mesas do vagão-restaurante, onde a clientela degusta iguarias que remetem à gastronomia dos países pelos quais passa o trem. O vagão-restaurante Anatolie, construído em 1925, tem paredes revestidas de lambris em marchetaria, decoradas de guirlandas de flores em madeira, assinadas pelo ebanista britânico Albert Dunn.

Atravessando os dramas da história

Contudo,  se atravessa a velha Europa das monarquias, o mítico trem sofre também as consequências das perturbações políticas. As guerras balcânicas e depois a Grande Guerra repercutirão imediatamente em sua circulação, interrompida desde agosto de 1914. O próprio armistício entre a França e a Alemanha é assinado em Rethondes, em 11 de novembro de 1918, num vagão do Orient Express, por imposição do marechal Foch.

Os anos 1920 e 1930 marcam seu renascimento e seu apogeu. Em 1919, após a abertura do túnel do Simplon nos Alpes (1906), um novo percurso, mais curto, é inaugurado. Partindo de Calais, os trens do Simplon Orient Express, cujos vagões em azul e dourado, com o monograma em bronze dos vagões-dormitório, são imediatamente identificados, levam agora menos de dois dias e meio para chegar a Constantinopla e Atenas, passando por Milão, Veneza, Zagreb, Belgrado, Sófia e Salonica - e evitando a Alemanha.

Em 30 de junho de 1919, o trem, chegando de Bucareste, é bloqueado na fronteira iugoslava por falta de combustível. Extenuados pela espera, os viajantes acabariam se cotizando para comprar madeira. Nada o detém, nem mesmo as novas fronteiras instauradas. Em 1930, ele é associado a seu homólogo turco, o Taurus Express, para conduzir os passageiros muito além do Bósforo, até o Egito e a Palestina.

A Segunda Guerra Mundial e, depois, a instauração do bloco do Leste representam um golpe fatal à expansão do Orient Express, que assegura, contudo, seus trajetos até os anos 1970, a despeito de um mundo dividido em dois. Aquele que conhecemos como o "rei dos trens e o trem dos reis" agora é só antiguidade. Talvez, não. Um projeto no qual trabalha a SNCF, proprietária de vários vagões considerados monumentos históricos, pode trazê-lo de volta à ativa.



(texto publicado na revista História Viva nº 131 ano XI)

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