domingo, 13 de maio de 2012

Um inferno cheio de esperança - José Francisco Botelho

A obra do poeta italiano reflete a grandeza sombria da alma humana: é a força da culpa, dos pecados, da angústia, mas também da crença na redenção.

Alguns escritores são tão poderosos que acabam se transformando em palavras ou conceitos que evocam visões do mundo e inquietações humanas universais. Como entender o século 20 - e toda a desarvorada modernidade em que ainda estamos mergulhados - sem passar pelo adjetivo kafkiano? Como descrever o espírito da Grécia antiga sem usar a palavra homérico? Também o italiano Dante Alighieri (1265-1321) converteu-se em um termo de significados formidáveis. Mas a grandeza evocada pelo adjetivo dantesco nada tem de olímpica. É uma grandeza sombria, aflitiva. É a grandeza da culpa, do pecado, da inevitável e eterna punição. É a grandeza do inferno,.

Essa herança póstuma não deixa de conter certa ironia. Ao escrever sua obra-prima, A Divina Comédia - composta entre 1308 e 1321 -, Dante pretendia criar uma ode cósmica à redenção e à esperança. O nome original do livro, aliás, era apenas Comédia (foi o comentador Boccaccio quem a chamou de Divina, décadas após a morte de Dante). É que o maior dos poetas italianos quis produzir o extremo oposto de uma tragédia: sua viagem pelos três patamares do além-túmulo (Inferno, Purgatório e Paraíso) foi concebida como uma ascensão do desespero à glória, do abismo à redenção. No entanto, gerações consecutivas de leitores ignoraram o final feliz, preferindo deliciar-se na descrição das mais sinistras profundezas humanas. O Purgatório e o Paraíso contêm passagens cheias de fina poesia e comoventes sutilezas dramáticas. Contudo, o traço mais marcante dessa divina e diabólica Comédia são os 34 cantos iniciais, que narram a descida do poeta aos nove círculos do Inferno, por onde desfilam gigantes, harpias, demônios, centauros e outros monstros menos classificáveis - além de uma espetacular legião de mortos danados e eloquentes, que encarnam, na infinita variedade de suas punições e pecados, o terror e a abundância da alma humana.

Dante Alighieri nasceu em Florença, no seio de uma família profundamente envolvida nos conflitos políticos e religiosos do período. A Itália dos séculos 13 e 14 era um tumultuado campo de batalha entre cidades poderosas e independentes. Patriotismo e lealdade eram sentimentos dirigidos não ao país, mas à cidade natal de cada um, e Dante amou sua Florença com um amor violento, possessivo e inflexível.

Amor florentino

Aos 9 anos, contudo, Dante conheceu um tipo bem diferente de amor. Certa vez, passeando pela cidade, deparou com a figura angelical de Beatriz Portinari, filha de um rico burguês. Dante apaixonou-se de imediato - e para sempre. Começava ali o mais célebre caso de amor platônico na história. Dante jamais cortejou Beatriz, que já estava prometida a outro homem. Beatriz morreu aos 24 anos, vítima de uma doença súbita e indeterminada, e Dante passou as décadas seguintes dedicando seus sonhos e seus versos àquela semidesconhecida, com a qual não chegou a trocar, ao longo da vida, mais que um par de palavras.

Já com Florença, Dante teve um caso bem mais carnal e agitado. Havia décadas, a cidade era ensaguentada pelo conflito entre duas facções irreconciliáveis: os guelfos (partido dos Alighieri), favoráveis à influência do Vaticano na Itália, e os gibelinos, que apoiavam o Sacro Império Romano - a potência expansionista da época, que abrangia Alemanha, Áustria e fragmentos de outros países. Os gibelinos foram derrotados em 1294, em uma batalha da qual Dante participou. Vitoriosos, os guelfos se dividiram em dois partidos e, à boa e velha maneira florentina, logo começaram a trocar punhaladas pelas costas. Na guerra civil dos guelfos, Dante escolheu o lado mais fraco. Tombou em desgraça, teve suas propriedades confiscadas e foi condenado ao exílio perpétuo: se voltasse a sua terra natal, seria queimado em praça pública.

O poeta passou o resto da vida vagando pela Itália, lembrando-se de Beatriz e tecendo juras de ódio a sua desleal e amada Florença. No amargor do exílio, tornou-se um homem irascível e orgulhoso. Tendo fracassado na política e no amor, dedicou-se furiosamente à literatura. Nas letras, seu grande guia era o romano Virgílio, autor do épico A Eneida, cujos versos Dante lia e relia com admiração filial. Decidido a igualar ou superar o mestre, Dante concebeu um objetivo de formidável e quase pecaminosa ambição: escrever, em italiano, o livro dos livros, um poema que contivesse as profundezas da terra, as alturas do céu e todos os estágios intermediários.

Além de ser um grande poema - talvez o maior do Ocidente - A Divina Comédia é um relato. Sua força descomunal só se revela por inteiro quando a lemos como narrativa fantástica - a história de um personagem, o próprio Dante,m que é arrancado de seu próprio mundo e lançado numa maravilhosa e apavorante jornada por universos sobrepostos, hipnoticametne diferentes e interligados. A história começa quando Dante se encontra "no meio do caminho da vida", perdido em uma "selva selvagem" e cercado por animais ferozes. A selva, o caminho e as feras podem ser apenas alegorias; mas A Divina Comédia tem essa propriedade quase mágica: seus símbolos parecem tão sólidos e reais que a nossa vida, aqui fora, torna-se um pálido reflexo de seus versos. No meio da selva selvagem, Dante encontra o fantasma de seu mestre, Virgílio, que vem dos mortos para convocã-lo a um tour pelos reinos do além. Beatriz, que está no Paraíso, deseja que Dante conheça o Inferno e o Purgatório antes de reencontrá-la nos campos do Senhor.

Tolstói escreveu que todas as famílias felizes se parecem entre si, enquanto as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. É que a felicidade e a virtude a tudo igualam, e a tudo diluem: por isso, delas há bem pouco a dizer. Os Paraísos mais convincentes da literatura são os mais simples - por exemplo, o Éden bíblico, que é apenas um jardim em cujas tardes Deus passeia. Já as visões do inferno, para serem verossímeis, precisam multiplicar mecanismos e geografias. Ao criar seu Inferno, o mais veemente de todos, Dante juntou a filosofia medieval e fragmentos das mitologias antigas - e conferiu vida aor reino dos mortos com um sopro de assustadora imaginação.

O Inferno de Dante está dividido em círculos concêntricos; por eles, distribuem-se os pecadores, minuciosamente classificados e punidos. Ali, nenhum tormento, nenhum horror está fora de lugar. É um caos impiedosamente ordenado: os que pecaram pela luxúria são arrastados num furacão subterrâneo; os que pecaram pela ira passam a eternidade estraçalhando uns aos outros nas águas do Estige; os suicidas, transformados em árvores secas, formam uma floresta quebradiça e lamuriosa, cujos galhos se partem sob o voo das harpias.

Mas a descrição desse monstruoso calabouço divino é perpassada por uma brisa de ternura e simpatia. De acordo com a filosofia de Dante, os habitantes do Inferno foram justamente condenados. Jamais sairão de lá; sua desgraça é perfeitamente racional, e definitiva. Apesar de si mesmo, contudo, Dante não consegue esconder sua piedade e às vezes até sua admiração por alguns dos danados. No círculo dos adúlteros, comove-se ao ouvir a história de amor de Francesca de Rimini e Paolo Malatesta; no círculo dos hereges, dialoga com o majestoso Farinata, um pecador tão heroicamente maligno que diz desprezar o próprio Inferno; e, no abismo dos traidores, conversa com Ulisses, o inesquecível viajante grego, que lhe faz o relato de sua última jornada aos confins do mundo.

Nesses pecadores de pungente humanidade, nós nos reconhecemos infinitamente: como eles, vivemos à beira do abismo, e esse abismo nos fascina e nos atrai. A culpa existencial não é invenção da civlização cristã - já está presente nas tragédias gregas e nas lendas do antigo Egito. Outro tema imortal é a esperança na redenção: e por isso não se pode compreender a Comédia de Dante apenas através do Inferno.

À medida que avança, passo a passo, rumo ao coração das trevas, onde o próprio Lúcifer está acorrentado numa horrenda geleira subterrãnea, Dante tem o pensamento constantemente fixo em seu iminente encontro com Beatriz - o único Paraíso concebível. Essa é a grande metáfora da Comédia: como Dante Alighieri, caminhamos na sombra, mas com os olhos fixos no céu estrelado. E por isso compartilhamos seu fantástico alívio quando, após encarar o Diabo em pessoa, ele se esgueira pela saída do Inferno e volta à superfície da terra, coberta pela simples beleza da noite:

Subimos, Virgílio à frente, eu atrás; pela boca da caverna, espiei as coisas belas que giram pelo céu. E então saímos, finalmente, para ver as estrelas.


(texto publicado na revista Vida Simples)







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