domingo, 18 de outubro de 2015

A síndrome do rock - Sinval Medina


Música no último volume? Acompanhe os efeitos dos decibéis em Carlos Padilha, um apaixonado que não deu ouvidos à bronca do pai.

Era um  garoto que, como milhões ao redor do mundo, amava os Beatles e os Rolling Stones. Com o rock nas veias, Carlos Padilha (hoje um bem-sucedido engenheiro químico em São Paulo) passou a integrar, aos 14 anos, a barulhenta banda formada pelos amigos do bairro, fazendo "misérias" com seu baixo elétrico. "Numa tarde de sábado, lá por 1969 ou 70, meu pai entrou na garagem onde ensaiávamos, hipnotizados, e gritou: 'Baixem o som, ou vocês todos vão acabar surdos'. Ninguém lhe deu ouvidos", lembra Padilha com uma ponta de arrependimento.

Passaram-se os anos, o sonho de tornar-se músico cedeu lugar à Química, mas a paixão pelos decibéis continuou. Adepto do som pesado de ídolos como Pete Towshend and The Who, o jovem baixista jamais abandonou a filosofia do "quanto mais alto, melhor".

Há cerca de dois anos, Padilha começou a dar razão ao pai pela bronca na garagem. "Não sei precisar o momento em que surgiram as primeiras dificuldades de audição, acompanhadas de um insistente zumbido. O jeito foi procurar um especialista e submeter-me a um teste."

O exame audiométrico não deixou margem a dúvidas. Padilha, 35 anos, realmente sofria de uma nítida deficiência de audição provocada por excesso de ruídos. Culpa do rock? Não. "Mas do alto volume em que costumava ouvir o som", diagnostica o dr. Perboyre Lacerda Sampaio, otorrinolaringologista em São Paulo. "Por isso a audição de Padilha sofreria danos, mesmo que preferisse música clássica ou samba."

Consoantes confusas

De fato, barulhos além do tolerável pelo ouvido humano podem causar a chamada perda neurossensorial. Trocando em miúdos, as células do ouvido interno incumbidas de transformar as ondas sonoras em impulsos nervosos sofrem danos ou ficam inutilizadas diante das agressões externas. Só que as coisas nem sempre acontecem de repente. "Em geral, o problema aparece após anos de exposição aos ruídos. Às vezes, porém, dependendo da intensidade, basta uma única exposição", esclarece o dr. Sampaio. Por exemplo: assistir a shows próximo às caixas de som; exibições de armas de fogo, próximo ao estande de tiro.

Quando o impacto é variável - diferentes níveis e volumes de som -, o dano pode ser, paradoxalmente, específico. O ouvido sadio responde a uma variada gama de frequências (número de vezes que a onda sonora se repete na unidade de tempo, medida em hertz). Tons mais agudos de um flautim chegam aos 20 000 hertz. Ruídos graves como o de um trovão à distância rondam 50 hertz. A capacidade auditiva humana situa-se entre 16 e 20 000 hertz.

Por razões ainda não esclarecidas, a perda neurossensorial começa, em geral, na região dos 4 000 hertz, correspondentes ás notas mais agudas do piano. "Felizmente, a maior parte dos diálogos ocorre em frequências menores - 500 a 2 000 hertz", tranquiliza o dr. Perboyre Sampaio. Assim, não há dificuldade em conversações normais. Mas atenção: os sons das consoantes tendem a ser emitidos em frequências mais altas (o que dificulta a distinção de sons como b, p, t); vozes femininas e infantis também se tornam menos compreensíveis, principalmente em ambiente barulhento. Tais características fazem muitas pessoas afetadas dizerem, com razão, que ouvem com clareza, mas não conseguem entender o que os outros falam. Na verdade, a incapacidade de perceber o fonema emitido provoca confusões, como troca de palavras (pato por bato, por exemplo), capazes de virar de ponta-cabeça o sentido de uma frase.

O ruído excessivo prejudica a audição de outras maneiras: sons suaves podem tornar-se inaudíveis, enquanto os intensos provocam irritação. Por exemplo, se você fala em voz baixa, o afetado por perda neurossensorial não escuta; se você eleva o tom, ele talvez reclame que não precisa gritar.

Outro sintoma comum é o zumbido constante no ouvido. Os especialistas não sabem exatamente por que, mas os nervos danificados começam a transmitir mensagens distorcidas, perceptíveis na forma de zumbidos ou chiados, semelhantes aos de uma televisão fora do ar. "No início, o som aparece esporadicamente: com repouso os ouvidos se recuperam e o tinido vai embora. Mas, se a agressão persiste, o sintoma se torna permanente", avisa o dr. Perboyre Sampaio. E alerta: 'Paralelamente, pode ocorrer também perda auditiva irreversível, pois as células sensoriais não têm possibilidade de regeneração".

Agora, se você imagina que apenas os fanáticos por música no último volume, como Carlos Padilha, estão sujeitos às consequências do barulho ensurdecedor, prepare-se para uma surpresa: os habitantes das grandes cidades nos países industrializados costumam sofrer de decréscimo auditivo devido à poluição sonora, inclusive nos ambientes de trabalho, como tecelagens, calderarias e aeroportos.

Nos anos 50, o audiologista norte-americano Samuel Rosen realizou testes com uma tribo africana, habitante da desértica fronteira entre o Sudão e a Etiópia. Distantes de buzinas, britadeiras e máquinas industriais, os nativos conservavam notável acuidade auditiva até os 70 anos ou mais. Já os norte-americanos não têm a mesma sorte. O pesquisador constatou que, por volta dos 65 anos, um em cada três tinha dificuldade de acompanhar conversas.

Recente estudo demonstrou que certos sintomas normalmente atribuídos à doença de Alzheimer - confusão, incapacidade de responder a perguntas - devem-se, na verdade, a graus variados de surdez.

O mais grave, de acordo com as pesquisas, é que o problema afeta um número crescente de jovens. Em 1969 (o ano do inesquecível festival de Woodstock), o dr. David Lipscomb, da Universidade de Tennessee, constatou que um terço dos estudantes de ambos os sexos (com idade de 18 anos), submetidos a testes audiométricos, revelavam deficiências em graus variados. Um em cada oito rapazes sofria de surdez grave, a ponto de dificultar a comunicação interpessoal.

Conclusão óbvia: a geração do rock, para alegrar o coração, martiriza os ouvidos. De fato, os concertos ao vivo produzem, frequentemente, ruídos em torno de 110 decibéis. O nível, semelhante ao de uma turbina de avião em funcionamento, é suficiente para lesar o ouvido numa única exposição.

Com o avanço da tecnologia, surgiram outros perigos. No início dos anos 80, o audiologista Maurice H. Miller, do Hospital Lenox Hill de Nova York, mediu o som de aparelhos tipos walkman usados por jovens nas ruas da cidade. Para seu espanto, registrou petardos acima de 90 decibéis, injetados diretamente nas vulneráveis orelhas dos transeuntes. Isso explica, segundo o dr. Miller, a afluência de pacientes com 13 e 14 anos de idade ao consultório dos audiologistas com queixas de zumbido e surdez. É claro que, em geral, a deficiência auditiva induzida por stress das células receptoras pode instalar-se aos poucos - como aconteceu com Carlos Padilha. Mas, quando a agressão é muito intensa, ocorre bruscamente.

Ataque surpresa

Bem, parece não haver margem para dúvidas: os ouvidos sofrem um bocado com os chamados progressos da civilização. E daí? Estamos todos condenados à surdez precoce, ou há meios de proteger-nos do perigo?

Ora, a forma de driblar as agressões externas é tão simples que chega a parecer brincadeira: evite barulho! Mas como avaliar o ruído excessivo, capaz de prejudicar a audição? Anote alguns exemplos corriqueiros: se você está num bar ou restaurante e precisa gritar para que alguém na mesma mesa ouça, está barulhento demais; se você tem de elevar o volume do walkman (no metrô, na rua, no carro) além do ponto 4 para abafar o ruído exterior, sinal vermelho. Há muito barulho.

Lembre-se ainda de que os danos dependem da intensidade e duração do som. Um multiprocessador de alimentos produz cerca de 85 decibéis - algo perfeitamente tolerável por um ou dois minutos. Agora, se uma pessoa fica exposta a esse nível de ruído no ambiente de trabalho (oito horas por dia, cinco dias na semana), será forte candidata à perda neurossensorial. À medida que sobe o volume, diminui o tempo necessário para os estragos: 120 decibéis - e muitos concertos de rock chegam lá - danificam o sistema auditivo em cerca de meia hora!

Bem que o ouvido tenta se proteger. Para isso, dispõe de uma membrana à entrada da parte interna que se fecha, amortecendo os sons. Mas pontadas súbitas, como a explosão de um foguete, pegam o sistema defensivo de surpresa e, dependendo da intensidade, causam mais danos que o ruído continuado.

De outro lado, as reações individuais também variam. Operários expostos ao mesmo nível de barulho ao longo de vários anos sofrem consequências diversas - alguns apresentam importante perda auditiva, outros resistem sem maiores problemas. A susceptibilidade pessoal depende, entre outras coisas, do fator genético. Assim, a existência de casos de surdez na família é um sinal de alerta, sem significar, em absoluto, uma fatalidade.

Já falamos que a melhor proteção contra o barulho é fugir dele. Ora, a tarefa envolve mil dificuldades num mundo povoado de liquidificadores, escapamentos abertos, máquinas de todos os calibres, além dos alto-falantes... Se você não pode mudar para uma casa no campo (e quem pode?), o jeito é fechar os ouvidos à barulheira que anda por aí. Literalmente. Existem dois tipos de protetores capazes de reduzir a níveis toleráveis e agressão dos decibéis: os abafadores e os tampões auditivos.

Abafadores são equipamentos utilizados por trabalhadores (operadores de britadeiras ou pessoal de terra nos aeroportos, por exemplo), semelhantes a fones de rádio. Abrangem todo o pavilhão auditivo e oferecem completa segurança - mas não combinam com todos os trajes e situações. Dependendo do seu estilo, talvez você não se sinta à vontade em uma festa com abafadores nos ouvidos. Além disso, em nosso clima tropical eles certamente esquentam as orelhas além da conta.

Já os tampões, menos eficientes, são sem dúvida mais discretos. Os tipos comuns diminuem em 30 a 35 decibéis qualquer barulho, tornando-o suportável. Até aqueles tampões de natação, que servem para impedir a entrada de água nos ouvidos ajudam bastante. Muitas pessoas os estão usando em casa, no trânsito, em bares e restaurantes, aviões e até estádios de futebol.

"Portas arrombadas, trancas de ferro", filosofa o engenheiro Carlos Padilha, que hoje não se separa do seu par de protetores, confeccionados sob medida para suas orelhas. "Habituei-me a usá-los como os óculos", diz o ex-roqueiro, preocupado em conservar o que lhe resta de audição. Mas não é só. Com muito jeito, persuadiu o filho Paulo, de 14 anos, a curtir o som de seus ídolos em volume civilizado e a ensaiar com tampões nos ouvidos. "É que o menino me saiu um excelente baterista, e vai muito bem na banda de rock da escola".



(texto publicado na revista Saúde é vital! nº 85 - outubro de 1990)

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