sábado, 17 de outubro de 2015

Por que tenho de suportar ? - Walcyr Carrasco


Estou escrevendo uma cena dramática, emocional. Quase choro em cima das teclas. De repente, o computador anuncia que, devido a atualizações, em alguns instantes vai reiniciar. Rapidamente teclo a opção para me lembrar depois. Continuo vibrando no clima. Dali uns 15 minutos, no auge da cena - um assassinato por exemplo - ele avisa de novo, vai reiniciar. Alguém consegue reiniciar o computador quando está no meio de um assassinato ? Mesmo que só escrito ? Não! Não! Não! Me livro e continuo. Em seguida à morte, vem, digamos, um casamento. Vou tomar um café. Volto, e o computador está reiniciando automaticamente. Fico um bom tempo esperando, enquanto ele anuncia que está atualizando isso e aquilo etc. etc. Depois, resolvo entrar no e-mail. Surge uma bolinha azul girando. Tudo para. O computador está verificando algo. Sinto uma vontade imensa de atirá-lo pela janela. Mas não vivo sem ele.

Depois vem o celular. Cada vez que eu ligo, ele avisa que meu iCloud está repleto e devo atualizar. Tento. Descubro que tenho de pagar. Não lembro minha senha para compras. Consigo ultrapassar essa etapa, mas o aviso volta e volta. Bem, depois ligo. No melhor da conversa, ninguém sabe como, entra o facetime. Não costumo falar por ele. É um programa que quer ser visto. E usado. Então, invade ligações. Desligo. Chamo de novo. A pessoa também está tentando ligar. Os dois damos caixa postal. Eu me pergunto:

- Mas preciso suportar tudo isso?

Dizem que sim, porque guardar dados na nuvem é fundamental. A tal nuvem não existia há alguns anos, e eu vivia bem! Novos programas são ótimos, nos fazem deixar os velhos. E isso, e isso e aquilo. Em compensação, se ligo para um amigo a 10 quilômetros, por exemplo, o celular não funciona. A voz vem entrecortada. Do alto das montanhas do Peru, eu conseguia ligar para o Brasil. De Lisboa, também. E do Japão. Daqui para aqui mesmo, é um inferno.

Não suporto mais: telemarketing. Eu vejo dez, 20 ligações do mesmo número. Já sei o que deve ser, mas também vem da cidade onde mora meu irmão. Reflito. E se for algo urgente? Atendo. Lá vem uma vozinha, que após confirmar meu nome diz que é de uma empresa X e gostaria de falar comigo. Eu digo que não posso no momento. Perguntam a hora ideal. Não tenho a menor ideia, claro. Não quero falar, só isso. Da décima vez, sou mal-educado. Eu acho horrível de minha parte. Sei que do outro lado está alguém trabalhando e que devo respeitar. Mas não quero comprar um outro pacote de alguma coisa que não vou usar. Acabo pedindo para não me ligarem mais. há sim um site onde a gente cadastra o número, que fica proibido de nos ligar. Mas eles mudam os números e derrubam as proibições. Agora, para uma pessoa de horários malucos como eu, que dorme muito tarde, imagine o que é receber uma chamada de telemarketing de manhãzinha!

Mas surgiu uma modalidade pior, muito pior. Começou com os políticos durante a campanha. O telefone tocava, e entrava uma chamada de propaganda falando das maravilhas de algum ser humano que hoje está sendo denunciado por vários motivos. Agora, muitos produtos descobriram o truque. Ligam.

Na minha telinha de chamada, aparece "desconhecido". Agora vejam: todos os telefonemas da empresa que eu trabalho, do meu chefe a outros setores, vêm identificados pela palavra "desconhecido". Jornalistas que me procuram também vêm como "desconhecido". Eu atendo, claro. Mas aí entra uma vez me oferecendo as maravilhas do cogumelo-do-sol! E já avisando que vai passar para um dos atendentes! Ultimamente, surgiu algo que simplesmente não entendo. Toca. Atendo. Uma voz com sotaque pede um instante para passar para meu correspondente. Desligo. A figura corresponde a que, exatamente? Será essa voz com sotaque o falar de uma anja, disposta a me ligar diretamente com minha alma gêmea, anunciada sob o título de "correspondente"? Eu estou negando as propostas de uma anja? Será alguém que descobriu meus incríveis predicados, iguais aos seus e quer me pôr no testamento? Ou será, simplesmente, engano? Olha, sinceramente, acho que engano é a última das possibilidades. É algum truque de marketing. Só que desligo antes de saber.

Eu me pergunto por que sou obrigado a gastar tanto tempo de minha vida com tantas coisas que não quero e não escolhi. É injusto. A vida é feita de escolhas. Eu só quero ficar tranquilo. Mas isso está sendo bem difícil.



(texto publicado na revista Época nº 885 - 25 de maio de 2015)

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