terça-feira, 22 de março de 2016

Relacionamentos e celular - Gustavo Gitti


Em um dos episódios da série inglesa Black Mirror, todas as pessoas usam um aparelho quase invisível atrás da orelha, capaz de gravar tudo o que ouvem e veem, para que depois projetem suas memórias na parede. A ficção nos leva a visualizar o que aconteceria se tal tecnologia caísse nas mãos do nosso monstrinho do ciúme - um exigindo comprovação da noite passada, outro apagando suas lembranças como se limpasse o histórico do navegador.

Em vez de focar nas alterações grosseiras do comportamento, prefiro olhar para como a tecnologia escancara dinâmicas sutis que sempre estiveram presentes, como controle, distração e nossa incapacidade de ficar sozinhos - às vezes observo casais em restaurantes: quando um se levanta para ir ao banheiro, o outro imediatamente saca o celular.

Aplicativos como o Tinder podem reforçar ou nos ajudar a gargalhar desa operação de se relacionar a partir de "gosto" e "não gosto". No Facebook, podemos dividir ainda mais os seres entre amigos e inimigos ou podemos nos alegrar igualmente com suas qualidades e agir para que suas visões se ampliem. No WhatsApp, em vez de exigir que todos fiquem disponíveis para nós, é possível se deliciar com mais uma chance de oferecer disponibilidade.

Como sociedade, ainda somos adolescentes, fascinados com tantos canais de comunicação: por mensagem, iniciamos papos que exigem olho no olho, escrevemos demais quando poderíamos apenas ligar, subestimamos o poder de um simples café despretensioso.

As mensagens constantes são uma forma de manter o movimento do outro sob nossa supervisão - infelizmente, ainda não superamos o famoso "Onde você está?". Por isso é tão importante aprender a espaçar a frequência de contato, liberar o outro em nosso fluxo mental. Lembro do começo do namoro com a Isabella: em vez de nos falarmos todo dia ao telefone, começamos a experimentar e-mails ou SMS esporádicos apenas para marcar o próximo encontro, nos desafiando a passar mais tempo sem checagem.

Você pode usar a internet para se entreter e reificar aflições ou para cultivar compaixão. Por trás até mesmo do pior comentário nas redes sociais, há um grito de socorro, uma tentativa desajeitada de ser visto, amado, uma vontade de ser útil, de se conectar à grande família humana. Se nos posicionamos com essa motivação, não é necessário demonizar a tecnologia. Em vez de nos cansarmos, começamos a dançar, a nos divertir com esse treino de como se posicionar de modo sereno e potente em meio a tanta reatividade. Um exemplo: toda quarta-feira, às 8h, via Google Hangout, me junto a pessoas de todo canto do Brasil para uma manhã de silêncio, com meditação guiada. É muito bom abrir o dia com esse momento de intimidade e de prática coletiva.

Para aprofundar, além de Black Mirror, recomendo os livros Alone Together (de Sherry Turkle, pesquisadora do MIT) e Conecte-se ao Que Importa (do jornalista Pedro Burgos), o curta-metragem Noah e as séries Mr. Robot e Humans.



(texto publicado na revista Vida Simples edição 163 - outubro de 2015)

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