sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Adeus à novela - Walcyr Carrasco



Meus personagens “falam” comigo toda hora. “Brigam” comigo. Com o fim da novela, eles partem. Sofro de saudade

Passei os últimos meses escrevendo a novela Eta mundo bom!, exibida pela TV Globo. Novela demanda tempo e esforço. Inicialmente, entrega-se uma sinopse, com a trama, os personagens e cenários. É um momento em que não se pode errar. Em cima da sinopse é definido o orçamento. São construídos os cenários e contratados os atores. Se, mais tarde, eu quiser inventar um hospital, por exemplo, não há como construí-lo na cidade cenográfica repleta de gravações. É possível fazer externas, em hospitais reais. Fica difícil em novela de época, como Eta mundo bom!, que se passava no final dos anos 1940. É preciso ter uma boa ideia da trama e de suas necessidades. Mas é um momento criativo, onde tudo é definido. Principalmente o tom da história. No caso, foi mais fácil, com a magnífica direção do Jorge Fernando, com quem já trabalhei muito e que entende perfeitamente meu texto.

Quando a novela vai ao ar, não se pode perder o ritmo. Em uma novela das 6, como Eta mundo bom!, são mais de 20 páginas por dia. Na novela das 9, o número ultrapassa as 30. Se eu e minha equipe perdermos um dia, não há como recuperar. Impossível escrever 50 páginas sem desmaiar sobre o teclado. E, ainda mais, cativantes! É árduo, mas apaixonante. Os personagens tomam forma. Quando eu, como autor, assisto à novela, eles se incorporam a minha vida como pessoas reais.

Eles “conversam” comigo, a toda hora, na minha cabeça. Calma. Parece uma incorporação espírita, mas não é. (Nada contra os espíritas, só que é diferente.) Quanto melhor um personagem, mais ele assume sua própria personalidade. “Briga” comigo, se quero levá-lo para um caminho com que não concorda. Vejam bem, não estou falando de conversa com os atores. Toda relação autor-personagem ocorre no imaginário. O personagem torna-se uma pessoa com quem partilho a vida. Na novela, são entre 40 e 50. Passei a “conversar” com eles todos os dias! A novela foi baseada no filme Candinho, de Mazzaropi. Mas o roteiro de Abilio Pereira de Almeida inspirava-se em Cândido, de Voltaire. Um livro do século XVIII foi a base de um estrondoso sucesso na televisão atual, sem falsa modéstia. Mas, feitas as homenagens a Voltaire e Mazzaropi, devo dizer que os personagens se tornaram meus. Tenho o hábito de escrever de noite e na madrugada. Ao terminar o capítulo, não conseguia desligar, porque eles continuavam vivos. Nesse processo meio doido, cada um conta sua história, fala de suas emoções, revela seus caminhos. Eu só ponho no papel.

Ao mesmo tempo, há um profundo diálogo interior. Quando eu era menino, morava em Marília, interior de São Paulo, então uma pequena cidade. Meu pai, João, ferroviário, me levava ao cinema quase diariamente. Cineminha à antiga, com dois filmes diferentes por dia. Ainda lembro de mamãe, decifrando as legendas para mim, antes que eu aprendesse a ler. Assisti a todas as chanchadas da Atlântida: Oscarito, Grande Otelo, Ankito. Os filmes de Mazzaropi. Tudo isso ficou em algum lugar dentro de mim. Agora, com Eta mundo bom!, essa memória saltou para fora, delineou os personagens. E a novela se tornou parte da vida! Confesso: só sei se uma cena é boa se me emociona. Quem convive comigo se assusta, ao passar pelo meu escritório e me ver chorando ou às gargalhadas diante do computador. Parece desvairado, solitário? Não é. Todos os personagens estão lá, compartilhando as emoções. Talvez um psiquiatra pudesse diagnosticar alguma síndrome muito séria, mas não vejo como alguém pode escrever sem uma entrega absoluta.

Agora, com o fim da novela, vivo o mais depressivo momento. Os personagens vão embora, quem sabe seguir suas vidas em algum lugar que não conheço. Acabou-se o diálogo diário. É como se um navio afundasse e só eu me salvasse. Tenho saudades de muitos personagens, como a Aninha (Mariana Ximenes) de Chocolate com pimenta. Depois do casamento, estará bem? Que faz agora, tantos anos depois? E Angel (Camila Queiroz), de Verdades secretas? Aprontou mais alguma? Nesta última novela, já sofro com grandes saudades. Meus amigos, meus queridos personagens partiram. Deixaram um vazio imenso, que só outro escritor consegue compreender. Sentirei falta, sim, de todas essas pessoas – para mim, vivas – que povoaram minha vida. Mas é preciso se conformar. Uma novela tem de ter um fim. O jeito é lembrar com carinho a máxima de Candinho, o protagonista: “Tudo que acontece de ruim na vida da gente, é pra meiorá!”. Quem sabe?

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