sábado, 5 de novembro de 2016

As vidas que não se via - Marcelo Bolzari


Com leveza e humor, "Colegas" leva a inclusão para o cinema pelo olhar de pessoas com síndrome de Down

Três amigos que têm sonhos. Stalone quer ver o mar, Aninha quer casar e Márcio quer voar. Para realizá-los, um dia, inspirados pelo filme "Thelma & Louise", resolvem fugir num velho carro numa viagem pelo mundo. Com este enredo, cheio de aventura e humor, "Colegas", longa que está em cartaz em salas de cinema de todo o país, fala de algo que precisamos falar mais.

Além da coragem para realizar seus sonhos, os três protagonistas têm várias características em comum, como a paixão pelo cinema, o trabalho na videoteca do instituto onde vivem e a síndrome de Down. Assim mesmo, tudo naturalmente junto e propositalmente misturado.

O diretor Marcelo Galvão explica que seu objetivo nunca foi falar sobre síndrome de Down e deficiência. "Colegas" fala sobre sonhos, amizade, coragem, superação, amor, temas que são universais e atemporais. Além disto, o grande barato acontece quando você esquece que os atores  têm Down. A partir daí, a gente se envolve com os protagonistas, se emociona, ri e torce por eles".

Para contar esta história, Galvão criou um roteiro cheio de referências cinematográficas, que aparecem nas falas, na fotografia e no figurino. E acertou em cheio na escolha dos três atores principais. Ariel Goldenberg (Stalone), Rita Pokk (Aninha) e Breno Viola (Márcio).

Engana-se quem pensa que o filme é a primeira experiência deles como atores. Os três já deram vida a vários personagens, sobretudo no teatro. Ariel e Rita, que fazem par romântico em "Colegas" e são casados na vida real, se conheceram, inclusive, durante uma montagem de "Romeu e Julieta" na Associação para o Desenvolvimento Integral de Down (Adid), onde os dois estudaram. "Houve uma paquera lá", confirma Ariel, divertindo-se durante a entrevista para a Ocas".

Rita explica que desde criança teve o sonho de ser atriz. "Eu falava para minha mãe que eu queria me tornar uma grande atriz de cinema, que eu queria brilhar". Na última edição do Festival de Gramado, quando "Colegas' levou os prêmios de melhor longa-metragem brasileiro e melhor direção de arte, o trio subiu ao palco para receber uma homenagem por sua atuação no filme. "Quando a Daniela Escobar [atriz] me entregou o Kikito, eu peguei e não queria mais soltar. Eu não acreditei. Foi uma emoção tão grande que até chorei", conta Rita.

Já para Ariel, o interesse pela atuação surgiu depois de assistir ao filme "Uma Lição de Amor", em que o ator Sean Penn vive um homem com deficiência mental que luta pelo direito de criar sua filha. "Quando vi o Sean Penn atuando, pensei: eu quero ser como ele. Daí pedi para minha mãe me colocar num curso de teatro amador. Não vou lembrar quantos anos eu tinha, mas eu era novo. De lá, fui pegando experiência."

A conversa com os dois atores aconteceu numa manhã de sexta-feira, final de fevereiro, na sede da produtora de Marcelo Galvão, a Gatacine, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Estávamos a alguns dias da estrela do filme e pela sala de espera da produtora espalhavam-se jornalistas, fotógrafos e todo tipo de equipamentos audiovisual. Antes da conversa com a Ocas, os dois já tinham concedido entrevistas para duas equipes de televisão e três grandes jornais. Para a parte da tarde, ainda havia uma agenda repleta a ser cumprida. Na hora de fazer as fotos, a boa surpresa foi a chegada de Breno, que além de ator - ele já fez teatro e participou da novela "Páginas da Vida", na Rede Globo -, é faixa-preta em judô - o primeiro com Down a conquistar o feito nas Américas.

Muito do interesse da imprensa pelo filme, sobretudo por Ariel, explica-se pelo destaque que ele ganhou após fazer um pedido em um vídeo, divulgado na internet, para que seu ídolo Sean Penn viesse ao Brasil para assistir à estréia do longa. "Sean Penn, eu quero que você venha assistir ao nosso filme, mas eu quero que você se sente ao meu lado", diz a mensagem da campanha #VemSeanPenn que ganhou apoio de diversas celebridades e se tornou um dos vídeos mais vistos e compartilhados na internet. Desde então, Ariel se tornou, ele próprio, uma celebridade, estampando capas de revistas e virando até alvo da campanha #VemAriel, em que atores com síndrome de Down pediam a presença dele na pré-estreia de uma peça.

Sobre a experiência de dar tantas entrevistas, ele ressalta que "o legal é divulgar o  filme e mostrar para a sociedade que os Downs podem fazer cinema. O filme está mostrando a inclusão na arte". Ele conta também que seu projeto é continuar com cinema. "Quero ser cineasta e acho que estou no caminho certo. Vou começar com um filme simples, um documentário sobre preconceito e inclusão, mas que não é o "Colegas", esclarece.

Quando perguntado sobre sua identificação com o personagem, ele conta que os dois não têm muito em comum. "O sonho dele era ver o mar e o meu é ser cineasta. Uma grande diferença", explica, destacando, talvez, a maior semelhança entre os dois - o típico desassossego de quem transforma sonhos em realidade.



(texto publicado na revista Ocas nº 88 - março/abril de 2013)

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