domingo, 24 de novembro de 2013

A cara do dono - Ana Marcondes



Não é por acaso que tantos donos de animais partilham traços físicos - e, em muitos casos, até psicológicos - com seus bichos de estimação; de fato, na hora de escolher uma raça as pessoas tendem a buscar companheiros com os quais se identificam, embora nem sempre tenham consciência de que priorizam algumas semelhanças

Os opostos se atraem, diz o senso comum. Quando se trata de escolher a raça do animal de estimação, porém, parece que a "sabedoria" popular se engana. Um estudo desenvolvido pelos psicólogos americanos Michael M. Roy e Nicholas J. S. Christenfeld, da Universidade da Califórnia em San Diego, mostrou que, muitas vezes, o que conta mesmo é a semelhança - e não a diferença. Os pesquisadores analisaram vários pares cão-dono. Interessados em saber se realmente as pessoas partilham traços físicos ou psicológicos com seus bichos, eles fotografaram, em um parque público, 45 donos e seus respectivos cães - 25 de raça e 20 vira-latas. Depois, mostraram a voluntários que não tinham acompanhado a pesquisa as fotos dos proprietários, de seu animal e a de outro cão. Em 16 dos 25 casos apresentados os observadores escolheram o par correto. Isso, porém, só ocorreu nos casos dos cães de raça.

Roy e Christenfeld constataram que, de forma mais ou menos consciente, as pessoas tendem a preferir um cachorro que se assemelha a elas, ao menos no caso de animais que possuem características bem definidas e previsíveis. As possibilidades de semelhança com o vira-lata são mais imprecisas já que no caso dos animais sem raça definida é mais difícil antecipar o aspecto futuro do filhote. Nesse caso, talvez fosse necessário levar em conta também a convivência e a relação, mas isso exigiria uma pesquisa mais aprofundada.

O que se sabe de forma cada vez mais detalhada é que bichos de estimação, mais ou menos parecidos com seus donos, fazem bem à saúde das pessoas. Na Universidade de Tel Aviv foi realizado um experimento para avaliar se fazer carinho em um bicho poderia reduzir a ansiedade após 58 voluntários entrarem em contato com uma tarântula. Havia um coelho e uma tartaruga, além de coelhos e tartarugas de brinquedo à disposição dos participantes para que escolhessem qual preferiam tocar. Ao acariciarem os animais de verdade, até mesmo a rígida tartaruga, a ansiedade foi reduzida, inclusive daqueles que não eram particularmente afeiçoados a bichos. Os animais de brinquedo não provocaram o mesmo efeito.

Resultados positivos também têm sido obtidos, em várias partes do mundo, com crianças com dificuldade de aprendizagem, idosos depressivos e doentes físicos e/ou mentais. Um episódio significativo faz parte da literatura médica. No fim da década de 50, o psiquiatra infantil Boris Levinson atendia um garotinho autista de 10 anos com graves problemas de comunicação. Quando o menino chegou para uma consulta, encontrou Jingles, o labrador do médico. O psiquiatra se aproximou e se surpreendeu ao ver a criança abraçada ao cachorro, falando de suas emoções, angústias e aflições. A experiência motivou Levinson a usar o simpático Jingles na terapia.

Hoje, passadas mais de seis décadas, se sabe que brincar com um animal de estimação produz uma reação hormonal benéfica, útil no combate à depressão. Esse efeito foi verificado em um estudo realizado pela Universidade de Missouri-Columbia. Várias pessoas com idade entre 19 e 73 ano, proprietárias de animal ou não, participaram da investigação. Cada um dos voluntários devia brincar com um cão por alguns minutos e em seguida eram medidos os níveis hormonais tanto das pessoas quanto dos animais. Para comparação, o mesmo foi feito com um robô semelhante a um cão. Foi observado que o contato com o bicho de verdade aumentava os níveis de serotonina, neurotransmissor ativo contra a depressão. A interação também elevou a quantidade de prolactina e de ocitocina, hormônios ligados ao bem-estar psíquico e ao sentimento de empatia.

O mesmo resultado, porém, não foi observado no caso do cão artificial. Os pesquisadores alertam, porém, que o uso de bichos em terapias deve ser benéfico também para o animal, que precisa ser poupado do contato com pessoas que possam lhe causar dor ou desconforto.


Afeto e dominação

O Brasil tem 98 milhões de animais de estimação segundo estimativa da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos para Animais de Estimação (Anfalpet). Esse mercado movimentou no país R$ 11 bilhões em 2010. Desse total, 66% correspondem a alimentação e 20% a prestação de serviços. Mundialmente, o setor faturou US$ 76 bilhões em 2011, segundo dados da mesma instituição. Os números são impressionantes e é compreensível questionar as razões da existência dessa quantidade de animais de estimação (pet em inglês, do verbo to pet, afagar, acariciar), bem como investigar os mecanismos sociais e psicológicos que nos levam a nos identificar com eles. As raízes da afinidade entre humanos e animais de estimação remontam à linha evolutiva da espécie. Há 10 mil anos, nossos ancestrais, caçadores e coletores, já conviviam com bichos e, não por acaso, a domesticação foi um dos eventos mais significativos da história humana, a ponto de hoje, para muita gente, ser quase impensável passar sem a companhia dos pets.

Um aspecto a ser considerado quando se pensa no aumento de pessoas interessadas em levar um bichinho para casa é a vida muitas vezes solitária nas grandes cidades, que impele as pessoas a buscar objetos de afeto que não demandem grandes investimentos - que seriam necessários na relação com outro ser humano, por exemplo. Afinal, embora exija cuidados como alimentação, companhia e um pouco de carinho, o bicho não fala nem faz cobranças. Outro fator contemporâneo que parece explicar a presença crescente de animais em nossa vida é a mudança na estrutura familiar. Os grupos amplos, com vários filhos, avós, parentes agregados e empregados deram lugar ao núcleo restrito, com o casal (ou apenas uma das figuras parentais) e um ou dois filhos. E há ainda um grande número de pessoas que vivem sozinhas nos grandes centros urbanos. Porém, a ideia simplista de que o vínculo com animais substitui outras relações, muitas vezes disseminada pelos meios de comunicação, pode ser contestada.

"A proximidade afetiva com bichos é uma necessidade profunda e autêntica dos seres humanos; sem exagero, poderíamos até falar de 'pulsão zoófila', uma antiga inclinação para estabelecer relações com outras espécies", afirma a psicóloga e psicanalista Barbara Alessio. "Pode ocorrer, é claro, que o vínculo com um animal esteja suprindo outras carências, mas se trata de uma distorção que pode ocorrer também em outras áreas e atividades."

A relação entre espécies, no entanto, muitas vezes é ambígua, já que mescla dominação e afeto. E a proximidade com o homem nem sempre é benéfica para os bichos, que terminam se tornando vítimas. Todos os anos, milhares de animais são abandonados ou até mortos porque apresentam transtornos de comportamento que, na realidade, são ocasionados pelas atitudes e condutas equivocadas dos donos.

Pesquisas indicam que a crueldade contra os animais está, frequentemente, associada a transtornos psicológicos e a comportamentos agressivos também em relação a pessoas. A violência pode ser indicador de situações familiares e ambientais problemáticas, caracterizadas por violência física, psicológica ou abuso sexual. Compreender o porquê dessa deterioração pode ajudar os envolvidos, sobretudo os animais - que, por si sós, não conseguem se defender.



(texto publicado na revista Mente Cérebro nº 235)








Nenhum comentário:

Postar um comentário