sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Dormir bem, comer melhor - Manfred Hallschmid e Jan Born


Há uma forte e estreita relação entre insônia e excesso de peso; estudos recentes confirmam que quanto pior é a qualidade (e a quantidade) do sono, mais aumenta a probabilidade de acumularmos quilos indesejáveis

"Posso passar às 10h ou nesse horário você ainda está dormindo?" José ouve muitas vezes esse tipo de pergunta. Sabe bem que, por estar acima do peso, muitas pessoas o consideram um dorminhoco. A verdade, porém, é que ele passa boa parte da noite virando-se inquieto, de um lado para outro na cama e olhando os números luminosos no despertador. O que o rapaz não sabe é que seus quilos a mais podem estar ligados a sua dificuldade de dormir.

Para muitos insones o problema é simplesmente não conseguir "se desligar"; para outros o desafio é não ter tempo para um repouso noturno eficiente. Na realidade, nos últimos 60 anos, moradores de países industrializados sofreram redução de uma a duas horas do tempo de sono, que hoje é de cerca de sete horas por noite. Ao mesmo tempo cresceu muito o número de pessoas com sobrepeso e obesidade mórbida; vários especialistas falam até em uma "epidemia de obesidade". Dezenas de estudos epidemiológicos que associam os dois fenômenos indicam que entre eles há uma relação estatística. Quanto menos dormimos, mais aumenta a probabilidade de ganharmos alguns quilos a mais - um fato confirmado também por muitos estudos longitudinais.

Mas quais são os mecanismos biológicos da relação entre insônia e obesidade? Céticos ressaltam que a maior parte dos estudos sobre o assunto se baseia apenas nas autoavaliações dos participantes, sem se ater a dados confiáveis e objetivos sobre qualidade do sono obtidos somente com base em avaliações aprofundadas conduzidas nos laboratórios do sono. Por esse motivo são cada vez mais numerosos os pesquisadores que procuram compreender melhor a relação entre qualidade do sono e alimentação por meio de estudos experimentais controlados.

Uma dessas pesquisadoras é a endocrinologista Eve Van Cauter, da Universidade de Chicago. Em 2004 ela e seus colaboradores pediram a um grupo de rapazes que dormissem, por duas noites, apenas quatro horas, enquanto o outro grupo podia ficar na cama por nove horas. Em seguida, os pesquisadores aplicaram exames em todos os voluntários para avaliar índices hematoquímicos e constataram que a falta de sono fez aumentar a concentração de grelina em cerca de 30%. Esse hormônio, produzido principalmente no estômago, é responsável pela sensação de fome. Seriam talvez as noites "breves" as responsáveis pelo aumento do apetite?


Famintos e preguiçosos

Em 2011, o bioquímico Peter Jones, doutor em nutrição, e sua equipe da Universidade de Manitoba, em Winnipeg, no Canadá, também procuraram entender se é mesmo verdade que comemos mais quando dormimos pouco. Os especialistas em alimentação acordaram os voluntários que participavam do teste após quatro horas de sono, por cinco dias, enquanto o grupo de controle repousava nove horas. Os cientistas documentaram em detalhes os alimentos consumidos pelos participantes durante o café da manhã. Descobriram que quem ainda sentia sono consumia em média 300 calorias a mais do que os indivíduos mais descansados - na prática, a energia correspondente a meio tablete de chocolate. Além disso, quem havia dormido pouco consumia cerca de 30% a mais de gorduras saturadas, particularmente nocivas à saúde.

Além dos hábitos alimentares, também a atividade física incide sobre o peso. Por isso, em 2009, na Universidade de Lübeck, na Alemanha, registramos a intensidade da atividade física de alguns voluntários depois de um sono noturno, longo ou breve. Para isso, colocamos em seus pulsos equipamentos chamados acelerômetros, que os participantes mantiveram por todo o dia durante suas atividades cotidianas. Avaliando as medições foi constatado que as pessoas com carência de sono se moviam menos e muito mais lentamente do que as que haviam tido uma noite inteira dedicada ao repouso. Isso demonstra que a falta de sono induz à preguiça.

Mais: quando os participantes submetidos ao teste ficavam de pé a noite toda, no dia seguinte emitiam menos calor corpóreo, indício de que após uma noite insone, o organismo "prefere" manter para si as reservas armazenando-as na gordura, em vez de queimá-las. Quando precisamos de energia, parte dela é liberada sob a forma de clor e, se essa "emissão" diminui, as calorias são depositadas principalmente em nossos quadris. Por meio de um teste chamado calorimetria indireta, medimos a termogênese, ou seja, a produção de calor pelo corpo. Os participantes respiram em um aparelho que registra a quantidade de oxigênio que se transforma em anidrido carbônico. Usando uma fórmula complexa calculamos a quantidade de energia consumida.

Não sabemos ainda se o efeito se manifesta também depois de uma carência prolongada de sono. Entretanto, muitos estudos indicam que os pacientes com distúrbios crônicos do sono consomem mais reservas durante a noite: é provável que esse processo seja compensado no dia seguinte pelo organismo para fazê-lo "reduzir a marcha".

Dormir pouco também altera a taxa glicêmica. Essa reação foi demonstrada pela equipe de Eve Van Cauter. Os pesquisadores pediram a alguns rapazes que dormissem apenas quatro horas por seis noites seguidas e nas seis noites sucessivas podiam ficar na cama por até 12 horas. No quinto dia de cada período foi realizado um teste no qual os participantes receberam uma solução açucarada.

Após o aumento considerável da concentração de glicose no sangue, os níveis voltaram a diminuir pouco a pouco. Mas os pesquisadores perceberam que os valores de glicemia desciam mais lentamente depois de noites "breves", em comparação aos das pessoas que tinham dormido. O motivo? O organismo produzia menos insulina, hormônio que tem a tarefa de concentrar no fígado, nos músculos e nos tecidos adiposos a glicose presente no sangue. Além disso, as células não reagiam mais com a mesma sensibilidade ao neurotransmissor; a chamada "sensibilidade à insulina" caía dramaticamente, estabilizando-se em um nível que os médicos verificam, normalmente, nos pacientes com alterações do metabolismo.

O fato de um sono repousante influir na glicemia já havia sido demonstrado em um estudo realizado nos Estados Unidos, o Nurse's Health Study, no qual foram examinadas, em um período de 30 anos e a intervalos regulares, cerca de 70 mil enfermeiras. A diminuição da quantidade e da qualidade das horas de sono aumentava o risco de ficarem doentes e de se tornarem diabéticas. Essa possibilidade aumentava em mais de 50% entre profissionais com menos de cinco horas de sono, em comparação às que dormiam mais de oito.

Para o equilíbrio energético do organismo o elemento decisivo é a qualidade do sono. Durante a fase profunda, que se instaura principalmente nas primeiras horas da noite, o organismo produz muitos hormônios que agem sobre o metabolismo dos glicídios. Essa etapa, medida por eletroencefalograma (EEG), mostra ondas lentas, as chamadas "delta".

Em 2008, o grupo de Eve Van Cauter afirmou que a alteração do sono delta pode desorganizar o mecanismo de controle dos glicídios no sangue. A pesquisadora fez com que um grupo de indivíduos que estavam dormindo ouvisse alguns sons de frequência e intensidade tais que impediam que acordassem, mas que também não entrassem no sono delta. A equipe registrou consequências dramáticas: a tolerância à glicose e a sensibilidade à insulina, de fato, diminuíam para um quarto.

Durante o repouso noturno o cérebro supre a própria necessidade energética recorrendo quase exclusivamente aos açúcares. Embora essas substâncias constituam apenas 2% da massa corpórea, o consumo cerebral de glicose e oxigênio corresponde a 20% de seu consumo total.


Gasolina para lembrar

No sono delta, é como se a necessidade de açúcar fosse "redimensionada" em comparação ao estado de vigília. O que indicou isso, entre outras coisas, foram os estudos realizados por Pierre Maquet, da Universidade de Liège, na Bélgica. O pesquisador ministrou nos voluntários que participaram de seu experimento uma solução à base de glicose com uma leve marcação radioativa. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) determinou a quantidade de açúcares consumida pelo cérebro nas várias fases de repouso. Assim, descobriu que durante o sono profundo a quantidade de glicídios necessária era muito mais baixa. Por mais que nesse momento, em geral, nosso cérebro reduza a própria demanda energética, algumas áreas cerebrais pareciam literalmente inundadas por "carburantes" - produtos químicos cuja combustão permite a obtenção de energia, como a gasolina, por exemplo.

Em 2010, uma equipe de pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade Harvard, coordenados pela psicóloga Radhika Basheer, mediu a concentração de trifosfato de adenosina (ATP) - a principal fonte de energia dos processos metabólicos celulares - no cérebro de ratos. Alguns animais tinham sido obrigados a permanecer acordados por longo tempo e outros haviam dormido normalmente, como de hábito. Após os exames, os cientistas observaram que a quantidade de ATP permanecia estável enquanto os ratos estavam acordados. Mas assim que entravam no sono delta, o nível da substância aumentava principalmente nas regiões cerebrais que são ativas durante a fase de vigília, entre elas o córtex frontal, o prosencéfalo basal e o hipocampo. Quanto mais profundo o sono dos animais, maior era a quantidade de energia colocada à disposição de seu cérebro.

Mas por que quando a mente repousa e o corpo se mantém imóvel nosso organismo alimenta justamente essas áreas cerebrais? É possível que, nesses momentos particulares, seja ativado um processo importante: a consolidação de memórias. O mecanismo faz com que consigamos recordar por mais tempo o que acabamos de aprender durante o dia.

Há tempos sabemos que, para recordar melhor as coisas que acabamos de estudar, depois da "imersão" nos livros costuma ser útil tirar um cochilo, mas tudo isso não depende do efeito relaxante. O cérebro, de fato, faz com que durante o sono os conteúdos da memória que vêm do hipocampo, onde as recordações são conservadas apenas por um período de tempo limitado, sejam "transferidos" para a memória de longo prazo do córtex cerebral.

A consolidação das recordações, estritamente ligada ao sono, ocorre somente quando nosso cérebro tem à disposição reservas suficientes de energia. Essa espécie de estoque energético "reage" de maneira sensível também a pequenas quantidades de açúcares no sangue, como tivemos a oportunidade de demonstrar em nossos experimentos em laboratório. À noite, após os participantes do teste terem memorizado duplas de palavras, no decorrer da noite reduzimos a quantidade de glicose em seu sangue com administração de insulina. Em comparação ao grupo de controle cujo nível de açúcares tinha sido mantido em níveis normais, na manhã seguinte esses voluntários não recordavam tão bem as informações aprendidas. Talvez a "diminuição de açúcares" induzida em laboratório tenha subtraído de seu cérebro o carburante necessário para a consolidação da memória.

Pela manhã, oferecemos às pessoas que sofreram de hipoglicemia durante a noite um suntuoso bufê: cada um consumia em média cerca de 150 kal a mais em relação ao valor ingerido depois de uma noite "normal". Foi constatado que os voluntários preferiam lanches  ricos em carboidratos, que fornecem energia ao cérebro mais rapidamente. Ao que parece, esse mecanismo é acionado também durante o sono, embora fique "desativada" a percepção da fome. Isso explica por que é muito mais comum ficarmos famintos quando estamos acordados.

Além disso, observamos que os participantes do teste tinham mais dificuldade de atingir a fase delta do sono durante a hipoglicemia noturna. Talvez isso dependa dos hormônios chamados orexinas (produzidos pelo hipotálamo que influenciam tanto o comportamento alimentar como o ritmo sono-vigília), que reagem à redução da glicemia. Sua atividade é indispensável para nos mantermos acordados durante o dia. Por isso, pessoas com deficiência de orexinas, como as que sofrem de narcolepsia, tendem a dormir de repente.

A eventual e repentina queda de energia durante o sono é aparentemente compensada pelo cérebro com uma sensação muito intensa de fome na manhã seguinte. Mas o que ocorre quando, durante a noite, o organismo tem à disposição açúcares em excesso? O apetite matutino é reduzido? Ao que parece, não: após ter administrado glicose em alguns voluntários jovens e com boa saúde durante a noite, foi constatado que o consumo de alimento na refeição não diminuía. O cérebro de quem dorme reage de maneira muito sensível ao déficit de energia: enquanto quando recebe demais, limita-se a aceitar com prazer o excedente, sem consequências.

Também a teoria do selfish brain do médico Achiin Peters, pesquisador da Universidade de Lübeck, atribui ao sistema nervoso central a função mais importante na cadei dos abastecimentos. De um lado, extrairia as substâncias nutritivas dos alimentos que consumimos e, de outro, colocaria de lado as reservas de energia, indo buscá-las nas regiões periféricas do organismo. Quando esse processo sofre alterações, acabamos comendo exageradamente. Desse modo garantimos ao sistema cerebral um fornecimento constante de energia, mas ao mesmo tempo provocamos uma "estagnação energética" no organismo. A consequência disso é o sobrepeso.


Dieta do futuro

Os principais fatores de risco que podem comprometer o equilíbrio orgânico são a redução e a alteração da fase de sono profundo, visto que nesse período o organismo se esforça para garantir o máximo de fornecimento de energia para determinadas regiões cerebrais. Talvez seja justamente esse o motivo pelo qual insônia crônica e excesso de peso são condições clínicas que tendem a se apresentar juntas.

Na prática, a compreensão dos efeitos práticos da complicada interação entre sono e alimentação pode ser útil a qualquer pessoa que queira se livrar dos quilos a mais. Em 2010, uma equipe de pesquisadores dirigida por Arlet Nedeltcheva e Plamen Penev, da Universidade de Chicago, em Illinois, prescreveu a dez voluntários com sobrepeso uma dieta de duas semanas. Os participantes do projeto foram divididos em dois grupos: aos integrantes de um deles era permitido dormir até oito horas e meia por noite e, ao outro, não mais que cinco horas e meia. As pessoas, como é natural, emagreciam em ambos os grupos, mas aqueles que repousavam menos se livravam de apenas metade da gordura corpórea em relação aos outros e, ao mesmo tempo, perdiam 60% a mais da massa muscular (o que costuma ser prejudicial). Todos esses estudos nos levam a pensar que, cada vez mais, as recomendações de dormir bem estarão ao lado dos outros conselhos já estabelecidos nos manuais de dieta.



(texto publicado na revista Mente Cérebro nº 235)











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