domingo, 11 de outubro de 2015

Henfil: como enfrento a hemofilia - Rosana Romero


A doença é hereditária: falta às suas vítimas o fator coagulante do sangue. Sem socorro, um simples corte pode conduzir à hemorragia. Neste depoimento a Rosana Romero, o humorista, escritor e um dos mais famosos cartunistas do Brasil fala de sua briga com a moléstia incurável.

Véspera do aniversário de São Paulo, em janeiro. Ao gravar um especial sobre a cidade para a televisão, o desenhista e cartunista Henfil, 39 anos, bate levemente o tornozelo ao subir uma escada. Na hora, em meio à tensão geral, nada sentiu. Mas ao chegar em casa deitou para relaxar um pouco e a dor começou. No dia seguinte, pela manhã, ele mal podia andar. O corpo arqueado, os passos arrastados e os movimentos lentos indicavam o que significa uma simples batida no corpo de um hemofílico: dias de dores e a constatação da perene fragilidade com que convivem.

Mas cada hemofílico tem uma forma especial de enfrentar a doença (hemorragias espontâneas ou devido a machucados), cuja origem é a produção insuficiente do fator VIII de coagulação sanguínea - uma proteína quimicamente instável, presente no sangue. "Se me perguntam se sou hemofílico considero isso um insulto, porque é algo que já neguei, não aceito, não reconheço; não mantenho relações comerciais ou diplomáticas com a doença. Trata-se de algo clandestino em minha vida. Recuso-me a aceitar suas manifestações; toda vez que ela me atinge, considero a situação uma derrota e saio para luta - não me deixo vencer!"

"Essa determinação o acompanha desde moleque, no norte de Minas Gerais, quando Henfil constatou que ele e mais dois irmãos eram hemofílicos; oito irmãos não sobreviveram por falta de assistência médica (a família era pobre); e as cinco irmãs não tinham o problema - a doença é transmitida hereditariamente pela mulher, mas não a afeta. Isso provocava no menino uma revolta muito grande.

"Quando começamos a entender que as mulheres só transmitiam a doença mas não a sofriam, ah, que raiva das minhas irmãs! Elas podiam correr pra lá e pra cá, se cortar, jogar futebol; nós, os três machos, todos lá deitadinhos, cheios de recomendações. Um pequeno corte levava uma semana sangrando. Para arrancar dente era um mês de hemorragia. Bastava cair ou bater o joelho para formar um hematoma que ia crescendo e doía muito."

D. Maria, a mãe, passava noites acordada se um dos filhos estivesse com dor; porém não tinha consciência da real gravidade da doença.

"A gente era orientado para ter cuidado, mas o excesso de preocupação muitas vezes nos tornava mais vulneráveis; a falta de movimentação e de exercícios também é perigosa para o hemofílico."

Durante muito tempo, nenhum mineiro soube diagnosticar a doença daqueles meninos.

"As crendices da época diagnosticavam uma doença chamada "púrpura", desequilíbrio que já teria sido experimentado até por Jesus Cristo, e responsável por seus suores de sangue. Mas um dia meu irmão Betinho - aquele cantado por Elis Regina,na música O Bêbado e o Equilibrista (de João Bosco e Aldir Blanc) - caiu e cortou o lábio. Nada estancava a hemorragia e Betinho foi para um hospital, onde recebeu transfusões de sangue. Minutos após, pronto! O sangue parou. Fora um milagre!"

"Um médico, então, resolveu dedicar-se ao caso. Estudou e descobriu o que já era conhecido em outros países; o fator de coagulação inexistente poderia ser introduzido através da transfusão de sangue de uma pessoa normal."

"Constatada a hemofilia sentimos até orgulho,por ser uma doença de sangue azul, da nobreza. Dizem que é consequência dos cruzamentos familiares. Provavelmente somos filhos bastardos da rainha Vitória, descendentes de algum caso da rainha com o cocheiro."

Dependendo da situação emocional, pode ocorrer uma redução ainda mais acentuada do fator VIII de coagulação. No caso do menino Henfil, por exemplo, em época de festas, véspera de Natal, aniversários, homenagens, punições, a doença piorava. Mais comum era a artrite hemofílica - dor aguda no cotovelo, com menos inchaço do que a também comum artrose no joelho. A perturbação era resolvida com compressas de água quente, sedativos ou até mesmo "fortes mentalizações".

"Até a lua pode desencadear manifestações da doença - comecei a notar que em certos períodos do mês ficava mais propenso a sangrar ou a ficar dolorido. Parece que nós também temos menstruação. Só que receei virar cobaia de mim mesmo. Quer dizer, eu corria o risco de me condicionar a ter problemas toda vez que fosse lua nova e abandonei a ideia. Mas algo ficou marcado: periodicamente há uma baixa no fator coagulante do meu corpo."

"Nesses períodos uso de tensão, associada ao movimento. Explico. Até os 18 anos, quando jogava muita bola, caso levasse um chute, imediatamente tensionava o corpo. Em vez de paralisar os movimentos, esfregava a região até ficar bem quente. A circulação do sangue, então, evitava maiores derrames. Se levasse uma pancada no braço, ficava 10 minutos movimentando a articulação, com exercícios contínuos. O importante era não deixar a dor ganhar. Assim, evite uma série de deformações."

"Além das massagens e dos exercícios, havia um terceiro elemento fundamental: a raiva. Cada vez que não ava para exercitar o local atingido, eu lançava uma raiva tão grande, concentrada, na dor, que ela passava instantaneamente."

E isso vale para todos os hemofílicos?

"Cada um tem seu jeito. Um tratam a hemofilia como mãe. Têm o maior carinho, se entregam aos seus caprichos. Se você dá uma negativa para um cara assim, ele pode somatizar. Sua fragilidade, alimentada pela superproteção familiar, faz com que ele utilize a doença para receber carinho, não ir à aula, não ser punido. Ele não cresce nunca. Tem um complexo de Édipo com a doença, costuma ser franzino e tem muitos problemas físicos. Já o que tem complexo de Electra enfrenta a doença como um pai. Eu escolhi esse caminho. Rebelde, luto contra suas imposições e sou fisicamente forte, apesar das limitações."

"Também desenvolvi um sétimo sentido, para compensar a perda da flexibilidade infantil. Os orientais o obtêm com a prática de artes marciais; os negros, com o treino da capoeira. Eu, como bom mineiro, inventei minha própria técnica de destreza, quando trabalhava como boy numa agência de publicidade."

"Ao percorrer o centro de Belo Horizonte, onde circulavam milhares de pessoas, andava muito depressa, me desviando das pessoas com golpes de corpo. Quem via não entendia nada, mas era uma forma de treinar minha agilidade para evitar agressões e baques. O resultado é que, em brigas de turma, dificilmente alguém me acertava. Era também uma forma de garantir a rebeldia em relação à hemofilia. E dava certo."

A coisa complicou quando, aos 20 anos, Henfil virou desenhista, com vida sedentária.

"Minha profissão é favorável à hemofilia. O trabalho intelectual obriga a posturas incompatíveis. O homem não foi feito para ficar horas sentado, mas parece que a família e a sociedade encaminham o hemofílico para profissões supostamente de menor risco. Quando fico ansioso como desenhista eu crio, porém meu corpo não se movimenta. Resultado: a ansiedade, que é fatal para nós, não se esgota com a arte, pois ela gera sua própria ansiedade, puramente mental. E o físico contraído prejudica as articulações. Se eu quisesse ser artista deveria ter escolhido a profissão de ator, nadador ou ginasta olímpico. Mas já que o intelecto ganhou dos músculos, o jeito é desatrofiar. Com a ajuda de minhas verdadeiras aliadas da causa, amigas fisioterapeutas, consegui desenvolver fortes músculos de cinco anos para cá. As pernas engrossaram e uma verdadeira couraça muscular evita maiores baques."

O excesso de atividade intelectual, no entanto, foi responsável, durante anos, pelos terríveis derrames nos rins, comuns à maioria dos hemofílicos. Geralmente provocados por excesso de ácido úrico, eles são acompanhados de coágulos, cuja dor equivale a vários cálculos renais de uma só vez.

"Dá vontade de subir no telhado ou enfiar a cabeça no forno. A dor é horrorosa e não adianta tomar sedativo na veia, pois o metabolismo se tranca e o coágulo não passa. Pode levar seis horas ou dois dias e você nota quando ele está saindo pela uretra. Eu atesto: a coisa melhor do mundo é quando ele sai. Eu achava a vida uma maravilha, beijava todo mundo. Um dia, a dor estava tão aguda que eu gritava: chama o Fleury, eu confesso! Lembro que comecei a rir e quem estava perto riu comigo. Nisso, consegui algo dificílimo, mas imprescindível para facilitar a passagem do coágulo: um minuto de relaxamento. Aí deitei e tentei segurar a sensação, isolando o ponto que doía, pois o resto era radiação. Em meio à luta mental intensa, simulei que urinava e mentalizei meu dedo no coágulo, expulsando-o. Foi incrível. Ele se moveu lentamente e saiu."

Henfil praticou muito tempo a reflexologia e costumava usar o relaxamento hipnótico para ordenar ao cérebro que estancasse a hemorragia. Autoritariamente. Com sucesso.

"Sou mesmo um cara muito autoritário, até colérico. Quando fico com raiva pareço o Figueiredo, meu olho fica vermelho, faço loucuras. Resolvi utilizar essa energia. Era mais fácil do que relaxar em meio a tanta dor. Quando eu notava o primeiro sinal do coágulo - urina espumosa - me trancava no banheiro e dava bronca nela. Com raiva mesmo, xingando. Ela se modificava na hora. Cheguei a usar o treinamento autógeno, fixando-me num reforço de fora. Então, se ela estivesse cor-de-rosa - o segundo sinal de coágulo é um avermelhamento - eu mentalizava a cor amarelo-escura, olhando para algum objeto nesse tom. Depois aplicava a cor branca e o corpo obedecia. O gozado é que ela ficava três dias branquinha de medo."

"Mas nem sempre o esculacho funciona. Há dias em que estou de pouca fé, desmoralizado, politicamente incorreto, sem forças para dar ordens. Quando rebolo na área, fazendo conciliações, a técnica não funciona. É preciso estar mais pra Teotônio do que pra Tancredo."

Hoje existem métodos mais eficazes para controlar a hemofilia do que na infância do Henfil. Antes, qualquer hemorragia obrigava a transfusões de seis em seis horas. Quem ia arrancar um dente tomava mais sangue do que precisava e depois devolvia o excesso. Descoberto o fator coagulante no plasma sanguíneo, os hemofílicos passaram a tomar a quantidade conforme a circunstância.

"É o chamado crio, uma injeção de plasma na veia que pode ser aplicada em casa mesmo. Se você sofre um pequeno acidente ou vai arrancar um dente, toma o suficiente para evitar hemorragia. Mas minha rebeldia não aceita dependências. Resolvi doar meus crios para um Centro Hemofílico, por julgar que o seu uso favorece acidentes - afinal, relaxa as defesas e a vigilância. Resolvi partir sem proteção. Só tomo se acontecer algo sério. Como estou atento 24 horas por dia, sei me desviar dos obstáculos antes que me atinjam. E isso é válido até para o sono."

"Durmo extremamente contraído, condição indispensável para acordar em forma. Sempre que durmo relaxado, acordo com problemas. Costumo arrumar algo que provoque tensão. Por exemplo, agora quero fazer um filme e muitas sequências estão indefinidas. Durmo com a dúvida, tenso, e de manhã tenho a solução."

"Sou uma pessoa 100% tensa, mas sei dosar a raiva. O objetivo é criar uma permanente couraça muscular, associada à fisioterapia e correta atitude mental. Tudo deve ser equilibrado, pois o excesso de tensão pode gerar um infarto. Aplicada a disciplina, o espírito de combate pilota a hemofilia e atuo com eficiência maior na criação. Escrevi o Diário de uma Cucaracha em sete dias. A revista do Fradinho, de 50 páginas, com desenho e texto, levava oito dias. Sou capaz de trabalhar em todos os jornais do Brasil ao mesmo tempo e quando não tenho ideia entro num processo de tensão controlada e zupt! Em 15 segundos crio um cartoon. Os melhores saem assim."

Os hematologistas aliados respeitam o jeito de Henfil.

"Eles não vêm com a arrogância da maioria dos médicos que dizem: impossível. Nos EUA, quando eu dizia como piloto a hemofilia, me olhavam como se fosse macumbeiro. Com os que me entendem troco ideias, porque eles sabem que não posso depender de nada. Me viro ou morro."

Nesse jogo vale tudo. Devido à vida sedentária, Henfil perdeu dois joelhos, ambos com artrose irreversível, cuja única esperança é o raio laser, talvez em alguns anos. Ou a engenharia genética, que acena com o fator VIII produzido por bactérias ou fermentos, em dois ou cinco anos.

"Aí a gente se liberta do plasma, que hemofílicos tomam às vezes sem precisar, só para evitar problemas. E aí ficam sujeitos aos AIDS. Eu não vou ter AIDS porque não tomo plasma. Meu corpo até desenvolveu rejeição ao crio e eu tinha que receber uma combinação de elementos para obter o fator VIII. Por isso, além das dicas ensinadas pelas fisioterapeutas - as mulheres é que me trouxeram a doença, elas que tratem de segurar as pontas -, desenvolvi um oitavo sentido. Vou explicar."

"Sou um verdadeiro radar humano. Percebo quem é capaz de agressão, aquela que o povo diz que seca. Vem de pessoas capazes de prejudicar fisicamente uma outra, de adoecê-la. Soltam uma química, uma energia, que provoca alterações no metabolismo do outro. O famoso olho gordo. Como sou alguém de certo destaque,  o olho está sempre presente e pode me enfraquecer. Se não o anulo de imediato, adoeço. Já me aconteceu isso em restaurante, teatro, gravações."

"Como reconhecer o olho? A medida é o bem-estar. Se alguém olha e você fica alegre, a vibração lançada é a de vida. Quando você sente mal-estar, inquietude, a energia é destrutiva. Se não percebo a tempo já saio do local com o braço doendo, até sem conseguir andar. Prefiro, por isso, cultivar a tensão, evitando uma fragilidade perniciosa. Tem gente que diz: relaxe. Aí você vira bicho-grilo, jogador de fliperama, um odara, que é essa bucha de canhão para ser usada por qualquer nova invasão estrangeira. A prostituta cultural. O cara chamado tenso tem um caráter político bom, é revolucionário, rebelde, o elemento mais importante da nossa sociedade."

Atualmente, a proposta de Henfil é canalizar essa experiência para a cura dos joelhos.

"É megalomania mesmo. Vou analisar as radiografias com o dr. Eurico Coelho, o grande pai dos hemofílicos em São Paulo, e receber explicações sobre os pontos de calcificação. Depois limparei toda a área, mentalizando. Sem deixar de tomar meus remédios homeopáticos, claro. Tomo dois comprimidos diários contra hemorragias nos rins e nunca mais tive coágulos ou artrite hemofílica nos cotovelos. Outra substância infalível é o veneno de cascavel, Protamus horroris, cuja dose varia conforme a intensidade da dor. O tornozelo atingido nas últimas gravações só não inchou porque tratei logo de tomar meu veneno de cascavel. Além disso, em breve começarei a praticar antiginástica: estou precisando de flexibilidade, estiramento."

"Outra técnica: o poder do grito. Sempre que corto o dedo, cozinhando, dou um grito ou uma olhada tão furiosa para o corte, que ele nem chega a pingar sangue. Em dois dias está cicatrizado."

"Quanto a remédios, alerto contra certos medicamentos, principalmente a aspirina e todos que contenham ácido acetilsalicílico (Sonrisal, Melhoral, Alka Seltzer, etc.). Alguns hemofílicos continuam tomando, sem saber que o ácido provoca alterações sanguíneas que podem levar ao derrame nos rins, com hemorragias violentas. Também bebidas são perigosas. O vinho é vasodilatador. Se você bebe muito - isso vale para qualquer pessoa - e sofre um acidente ou baque, vai sangrar mais. No meu caso, a bebida é danada. Mas eu não deixo de beber por esse motivo. Lembre-se: eu é que piloto a hemofilia. Deixo de beber porque desejo manter a lucidez. Se relaxar fico desatento e posso me machucar."

Henfil olha para a frente. Não há pai mais severo, dentro de sua concepção do complexo de Electra. Nem mais combativo piloto do destino. Por isso, o mais conhecido cartunista do Brasil agora parte para a antiginástica e a colheita de um novo fruto em sua vida permanentemente criativa: o cinema. A hemofilia que se cuide.




(texto publicado na revista Viva Vida com Saúde! nº 6 - março de 1984)

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