sábado, 15 de outubro de 2016

(Personagem da semana) Do lixo ao Oscar: Sebastião Carlos dos Santos - Mariana Shirai e Nelito Fernandes



O catador que criou uma cooperativa, virou obra de arte e agora está em filme indicado pela Academia

Ao ver seu retrato ser vendido por R$ 100 mil em um leilão londrino, o catador de lixo Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, não segura o choro. "Eu vejo que tudo na minha vida valeu a pena", diz o presidente da cooperativa de catadores de materiais recicláveis do Jardim Gramacho ao artista plástico Vik Muniz, autor da obra. O momento decisivo na vida de Tião é uma das cenas mais tocantes do documentário Lixo extraordinário, produção anglo-brasileira que foi indicada ao Oscar de Melhor Documentário na semana passada. O filme acompanha Vik durante o projeto social e artístico que ele promoveu na comunidade do maior lixão da América Latina. Depois de fotografar catadores, ele transformou as imagens em obras de arte, usando o lixo como uma espécie de tinta. No filme, diante do choro de Tião, Vik profetiza: "Isso é só o começo, cara, só o começo."


O começo foi lá atrás e não foi fácil. A profissão que hoje, aos 32 anos, dá orgulho a Tião já foi motivo de vergonha. Ele começou a catar lixo com 11 anos, com a família. "Para mim, catar lixo era natural", diz. Para os outros, não. Sua mãe deu uma entrevista para o Globo Repórter e ele passou a ser perseguido pelo colegas da escola. No dia seguinte à entrevista, chegou à sala de aula e viu escrito na lousa: "Tião, filho da xepeira", uma referência à xepa, prática de pegar os restos de feiras para levar para casa. Numa festa da escola, Tião dançava com a namoradinha quando um menino anunciou pelo microfone: "Olha, ela está dançando com o filho da xepeira". Humilhado, Tião saiu da festa correndo. Saiu também da escola. Ficou cinco anos sem estudar. Agora ,cursa o 2º ano do ensino médio. Seu sonho é fazer sociologia.

Tião parece um cantor de reggae. Magro, cerca de 1,75 metro, de calça jeans apertada e dreadlocks, é brincalhão e muito eloquente. A frase é preconceituosa, mas deve ser dita: você não imagina encontrar um sujeito como ele ali. Na assembléia dos catadores da última quarta-feira, era ouvido atentamente pelo companheiros. São 1.480 associados à ACAMJG e Tião é um de seus fundadores. Depois da indicação ao Oscar, ele acha que sua voz vai chegar muito mais longe que os 300 metros quadrados do galpão sufocante da associação dos catadores. "Quem nunca teve voz agora vai ter, agora vão nos ouvir", diz ele.

Os catadores estão em litígio com a prefeitura de Duque de Caxias. O lixão será desativado em 2012. Segundo Tião, o plano de desativação previa a formação de um fundo de R$ 1,2 milhão para a recolocação dos catadores no mercado de trabalho. O consórcio vencedor já foi escolhido, mas o fundo não saiu do papel. Na assembléia, os catadores decidiram fazer uma passeata de protesto até a sede da prefeitura. "O poder público é igual a feijão ruim: só funciona na pressão", diz ele, aplaudido por cerca de 200 catadores. O próprio Tião não cata mais lixo desde 2007, quando foi eleito presidente da cooperativa. Cada cooperado ganha cerca de R$ 50 por dia. Ele recebe R$ 700 mensais. "Perdi dinheiro", diz, rindo. 

No filme, Tião diz que gosta de Nietzsche e Maquiavel. Ele encontrou um exemplar de O príncipe, de Maquiavel, no meio do chorume do aterro. Depois de ler, ficou comparando os príncipes descritos por Maquiavel com líderes do tráfico. Ele conta que a obra foi fundamental quando estava começando sua própria liderança. "O que é bonito no Tião é que ele mantém o respeito pelo lugar de onde saiu. É carismático, interessante, engraçado. Está famoso e ainda me liga a cobrar", diz Vik Muniz.


A vida de Tião está mudando. A cooperativa recebeu R$ 200 mil da venda dos quadros, dinheiro que foi investido na compra de equipamentos e obras. Tião e outros seis trabalhadores retratados ganharam R$ 10 mil cada. Ele comprou uma casa num bairro próximo ao lixão, onde vive com a mulher e a filha de 9 anos. Agora se prepara para a entrega do Oscar - embora não vá ao cinema há 11 anos. Se o filme ganhar, Vik diz que é o astro e catador quem vai receber a estatueta. Tião quer ver Angelina Jolie de perto. "Dizem que ela é tão linda que a gente fica até mundo." E sua mulher, não ficaria com ciúmes?" Ela sabe que a Angelina Jolie nunca ia dar mole para mim. Vou trazer uma foto do Brad Pitt para ela. Se bem que ela gosta mais de um pretinho, o Will Smith acho que seria melhor." Esse é Tião.




(texto publicado na revista Época nº 663 - 31 de janeiro de 2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário