sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Comida tranqueira: descubra a sua - Walcyr Carrasco



O restaurante francês serve dois fiapos de peixe. Ganha atenções, é elogiado. Mas deixa a gente com fome

Adoro sanduíche de mortadela. Desde criança. Aliás, nem entendo por que a mortadela não merece um lugar especial junto aos grandes tops da culinária. Nunca vi alguém servir carpaccio de mortadela, por exemplo. Mas já me entucharam carpaccio de berinjela por preço de caviar. Tem graça berinjela crua? Em São Paulo, no Mercadão, há um sanduíche de mortadela que até o chef e crítico de culinária americano Anthony Bourdain, em passagem pelo Brasil, elogiou. O segredo: pão francês com muuuuuita mortadela. A rede de padarias Dona Deôla incorporou: faz o sanduíche igual. Outro dia conversava com um recém-conhecido com quem pretendo fazer um trabalho. No momento em que ele confessou que havia almoçado um sanduíche de mortadela de pé, tornamo-nos íntimos. Já fui à casa do Faustão, que oferece uma pizza aos amigos de quando em quando. Nas entradas, mortadela italiana. Dá vontade de levar para casa!

Há certo preconceito contra a comida tranqueira. Qualquer restaurante francês inaugurado ganha atenções, avaliações, é elogiado. Mesmo que sirva um menu-degustação com dois fiapos de peixe grelhado, depois uma nesga de carne com um pingo de molho. Deixa a gente com fome. Mas come-se com cara de chique. Garanto: feijoada de bar costuma ser ótima. Sim, daquele barzinho da esquina. Na cozinha, há alguém que faz a mesma feijoada todos os sábados há uns 15 anos. Não vai fazer bem? Pastel de feira também. Tem coisa melhor que pastel frito e gorduroso? Justamente em cima desse exemplo estabeleci uma tese: colesterol, gordura trans e carboidratos é que dão sabor! Um grande amigo ama pastel de ovo frito, que só existe no mercadão de Marília, interior de São Paulo. Como fui criado lá e ele nasceu na mesma cidade, até hoje, quando vamos, devoramos essa bomba calórica. É só comer e fugir da balança por uns três dias. Ou meses.

Já publiquei várias fotos no meu Instagram comendo coxinha de beira de estrada. Sou maluco por coxinhas. Também gosto daquelas feitas por donas de casa de bairro, especializadas em festas de criança. Menorzinhas, uma delícia. Assim como empadinhas. Prefiro as de palmito. Podem estar frias e a massa pode se espalhar sobre meu suéter. Só perdem para os sanduíches tradicionais. Calabresa, cheese-salada, bauru, americano. Outro dia, perguntei em um posto no trajeto Rio-São Paulo: qual é o mais vendido?

– Americano – respondeu o chapeiro.

Faz sentido: tem ovo, queijo, presunto. E alface, para aliviar a consciência. Adoro um americano. Mas o de calabresa na chapa é imbatível.

O bom dessas maravilhas é que não é preciso ir a um restaurante caríssimo. Estão aí, em qualquer canto. Há bares e lanchonetes melhores e piores. É só descobrir o seu. Um sanduíche equivale a uma refeição. Ainda mais seguido de uma coxinha bem frita. Digo o mesmo sobre o cachorro-quente de rua. Sim, os simples, com salsicha e mostarda. Já encontrei lugares onde se recheava o cachorro-quente com purê de batata. Ficava difícil de caber na boca. Mas um cachorro-quente na hora da fome é melhor que um prato elegante. Com a vantagem de que posso chupar os dedos para aproveitar os últimos restinhos de mostarda.

Bem... eu sei que vivo reclamando da minha barriga. E que o regime é algo constante na minha vida. Gula e dieta formam minha dualidade, que fazer? Certa vez, um amigo médico me indicou um especialista em regimes. Sentei-me diante do sábio, à espera de um milagre. O médico, seco como um bacalhau, como devem ser os doutores que emagrecem, explicou:

– Não dou importância à comida. Para mim, um peixe no micro-ondas por alguns minutos já está bom.

Fugi horrorizado. Se o homem era capaz de sobreviver com um peixe no micro, jamais me compreenderia! Seu cardápio certamente me levaria a uma profunda depressão. Comi uma feijoada na primeira esquina e ainda mordi os torresmos. Tem coisa melhor que torresmo?

Há em São Paulo uma lanchonete famosa pelo sanduíche de pernil, o Bar Estadão. Fica aberta a noite toda e o pernil é fresquinho. Baratinho. Pelo país afora, há pratos que despertam o mesmo prazer e idêntico peso de consciência. O acarajé fritinho na hora da Bahia. O tacacá em Belém, no Pará, com jambu, tucupi e camarão seco.

Talvez seja essa a maravilhosa culinária brasileira, tão pouco respeitada. Alguns chefs como Alex Atala se interessam por ela. Mas ainda é na rua, baratinha, que se encontra a boa comida tranqueira. Engorda? Depois eu dou um jeito. Pode crer. Comida tranqueira é gourmet.


(texto publicado na revista Época nº 951 - 5 de setembro de 2016)

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