sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Quem vai dizer o que é normal na velhice? - Walcyr Carrasco


As filhas, evangélicas, não suportam a ideia de a mãe se apaixonar após os 70 anos. E por um viciado

Não há fragilidade maior que a velhice. O idoso torna-se uma vítima em potencial até de quem tem boas intenções. Filhos e parentes mais próximos, no caso. Quando há uma questão médica evidente, como demência ou Alzheimer, é necessário que alguém se torne responsável pela pessoa. O que inclui cuidar do dinheiro, encontrar enfermeiros, contratar uma clínica. Enfim... cuidar. Mas há muitos casos, até frequentes, em que a análise da interdição passa por códigos morais. E os filhos, unidos, podem interditar um pai ou uma mãe que simplesmente resolveu aproveitar a vida. Vou contar uma história.

Ela foi a vida toda enfermeira numa cidade do interior de São Paulo. Bonita, alegre, casou-se. Mas tinha o diabo no corpo. Era, como diziam na época, falada. Saía com outros, sem muito critério de escolha. O marido descobria e a devolvia para a casa da mãe. Mas tinham quatro filhas (duas de filiação suspeita). As meninas clamavam:

– Cadê a mãe?

– Eu quero minha mãe.

O pai, de coração mole, voltava a buscar a mulher. Dali a pouco, outro escândalo. Chegou a encontrá-la nua e bêbada num canavial. Levou-a para casa, deu um banho quente. Sempre digo, quem perdoa uma vez, perdoa sempre. O problema é só a primeira. A vida conjugal continuou entre traições, brigas e perdões. Então, na meia-idade, aconteceu o inesperado: ela se separou dele.

Tornou-se evangélica.

Esse tipo de comportamento é comum entre mulheres belas e desejáveis. Inclusive atrizes ou modelos famosas. Caem os peitos e sobe o espírito. Ao sentirem que a beleza está passando, dedicam-se aos afazeres da alma, renegam o passado. Convertem-se, arrependidas. Tornam-se as mais ferozes na defesa de regras de moral. Aconteceu com ela. Com as filhas já crescidas e netinhos, tornou-se uma avó comportada, fiel esposa do segundo marido. Envelheceu. Enviuvou. Aposentou-se. Com a pensão do marido, mais a renda própria, vivia confortavelmente, dentro de seus padrões. Mas aí...

Começou a pedir dinheiro emprestado. Às filhas. Aos genros. Aos netos! Vez ou outra, até sumia com um objeto da casa de um parente. As filhas, bem casadas, donas de casa evangélicas, foram investigar. A mãe, aos 70 anos, tinha se apaixonado novamente. Por um homem de 40. Viciado em crack.

Escândalo. A mãe, feliz, apaixonada. As filhas, apavoradas. Inclusive porque nenhuma mulher jovem acredita que um homem tão mais novo se apaixone por uma velha. Acontece sim. Era amor real. Mas tinha o crack na história.

– A mãe está doida! – gritou uma das filhas.

Cortaram empréstimos, vigiaram as visitas maternas. O namorado foi preso, nunca se soube exatamente por quê. Agora, aos 74 anos, ela o visita regularmente na cadeia. Leva comida, cuida. Ama. As filhas se reuniram.

– Mamãe realmente enlouqueceu.

– O jeito é interditar.

Analisando a biografia da mãe, não há nada contraditório. Foi assim, anticonvencional, a vida toda. Só teve uma fase mais comportada no segundo casamento. Mas as filhas resolveram interditá-la afirmando que estava sem noção de seus atos. Uma interdição significaria que o recebimento de suas pensões fosse feito por uma das filhas. Ela perderia seu cantinho, sua liberdade, e talvez acabasse internada. As filhas, evangélicas, não podiam suportar a ideia da mãe se apaixonar depois dos 70. O namorado era um traste? Era. Mas, para quem ficava nua no canavial, até que combina.

Contrataram advogado, médico. Todos, dentro da moral convencional, concordaram:
– Ela está fora de si.

Fizeram o documento. Mas, de acordo com o despacho do juiz, todas as filhas tinham de assinar. A quarta teve um momento de lucidez.

– Desde jovem, a mãe é assim. Só voltou a ser como sempre foi. Não vou assinar.

Briga horrível em família. Três irmãs não falam mais com a quarta. Ou melhor, só voltarão a falar se vier a assinatura. Ela se recusa, há dois anos. Rompimento absoluto. Enquanto isso, a mãe continua indo regularmente à cadeia visitar o amado. É loucura? Como, se a faz feliz?

Seu destino está nas mãos dessa única filha, que compreende seu lado mais íntimo.

– A mãe é assim – teima.

Muitos idosos são interditados. Perdem suas casas. São internados. Boa parte simplesmente porque não tem uma filha igual. Família, médicos, advogados analisam o comportamento sob um código moral. Mas e se na velhice alguém quiser ser apenas diferente?



(texto publicado na revista Época nº 953 - 19 de setembro de 2016)

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