segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O gato sentinela - Irving Townsend


O gato não é meu. A crise que, durante algum tempo, me transformou em dono dele quase destruiu a nossa amizade, pois dominou de tal modo as nossas vidas que elas acabaram colidindo. Antes daquele tiro, eu não passava de um amigo da família. Conhecera a sua avó, e reconheci no neto o jeito formal da aparência dela, quase toda preta, com um peitilho branco e uns salpicos brancos pelas pernas.

A mãe dele era branca, arisca, e nunca teve confiança em mim. Ele nasceu entre fardos de feno, na estrebaria, e só quando seus olhos se abriram foi que a mãe o levou, juntamente com os irmãos, para o monte de lenha perto da minha garagem. A essa altura, eu havia admitido a permanência de gatos à minha volta, e vinha dando comida a uma dezena deles todas as manhãs. Ele foi o primeiro da ninhada a trepar até o alto da cerca, depois, até o galho da árvore que dá para o telhado da minha casa. Foi ali que ele assumiu a sua vigilância, na beira do telhado. Ficava à minha espera, e depois me seguia, lá de cima, até a mesa do café.

Era a primeira cara de gato que eu via todas as manhãs, flutuando ao longo da borda da minha casa, aparecendo através dos galhos da árvore em que ele subia, e por  fim erguendo-se acima da cerca. Seus olhos grandes eram cor de ouro tipo faraó; o olhar fixo, zangado como o de uma coruja, franco e destemido. Era eu quem sempre desviava primeiro os olhos.

Ele ainda era um adolescente quando começou a descer do seu passadiço para me receber à minha porta. Três cachorros me precediam na hora de entrar, dando cambalhotas pela manhã adentro e dispersando os pássaros madrugadores e os gatos descuidados que concentravam à sua frente. Mas o "gato-de-guarda" (como eu passara a chamá-lo - uma espécie de versão felina dos cães-de-guarda) mantinha-se firme; depois caminhava à minha frente até o cercado, cauda esticada, orelhas achatadas para evitar o hálito da respiração dos cães.

Lá dentro, as irmãs e irmãos dele esperavam que a porta fechasse, antes de se aventurarem a chegar junto à panela. O gato-de-guarda, não. Aboletava-se para comer, sem nem sequer um olhar para trás.

Passou o seu primeiro verão rondando o pasto, ou imóvel à entrada da toca de um roedor, ou ziguezagueando no meio do gado. De vez em quando nós nos encontrávamos, e nessas ocasiões ele me acompanhava, sempre com passos mais decididos que os meus. Parecia ter necessidade de chegar primeiro ao meu destino, e depois prosseguir um pouco além, até o seu próprio objetivo. A liberdade dele era total, vivida sem limites; ele dava a impressão de ter uma centelha mais brilhante que os demais.

Em fins de janeiro, houve uma semana de chuvaradas. Quando faz um tempo assim, os gatos que vivem ao ar livre se abrigam em caibros do telhado, em baias vazias, mas mesmo debaixo de aguaceiro não deixam de comparecer à panela da comida. Pois durante três dias o gato de fila sumiu. Não me preocupei; ele já havia pernoitado fora outras vezes. Na manhã de quinta-feira, entretanto, quando passei pela garagem, ouvi a sua voz...e depois o vi. Veio ao meu encontro, pela chuva, caminhando sobre a perna dianteira esquerda e a direita de trás, usando como muleta a dianteira direita, que estava ferida. A perna traseira esquerda estava pendurada, uns poucos centímetros acima do solo, e o gato era uma massa quase irreconhecível de pelo e ossos. Levei-o para casa, cobri-o com uma toalha e segurei-o junto a meu peito para aquecê-lo. Através da toalha senti que ronronava. Desembrulhei-o então para examinar as feridas. A perna dianteira direita estava infeccionada, começando a inchar. A traseira esquerda estava a tal ponto esmigalhada que pendia do encaixe do osso, como se fosse uma borla de cortina amassada.

Carreguei-o para o carro e fui dirigindo sob chuva torrencial até o hospital veterinário, onde o depositei nos braços do médico. O gato-de-guarda e o homem desapareceram dentro de uma sala de consultas, deixando-me com a incumbência de fornecer a uma assistente as credenciais, minhas e dele. "Como se chama o gato?", indagou ela.

"Ele não tem nome."

A moça olhou para mim, atônita. Como explicar que o gato-de-guarda não tinha necessidade de nome? Nós dois sabíamos quem ele era. "Conheço-o desde que nasceu", disse eu, afinal.

Mais tarde o veterinário me telefonou. "O seu gato levou um tiro", informou-me. "O osso da perna de trás está destruído; a perna direita está infeccionada mas não fraturada."

"Pode consertá-la?", indaguei.

"Vai ser necessária uma operação de duas a três horas, um parafuso para ligar a perna. E vai custar 100 dólares". Ele hesitou. "Ou então, eu poderia sacrificar o animal."

"Ele vai poder andar de novo?"

"Durante vários meses, não; mas os gatos jovens se refazem depressa."

"Então, pode consertar", disse eu.

O gato-de-guarda voltou para casa passados 10 dias. A perna destruída fora recomposta e depois fixada com um parafuso cuja cabeça descia até debaixo da articulação. As instruções que me deram ficavam pouco aquém do impossível: confiná-lo durante um mínimo de três meses num quarto onde não houvesse acima do assoalho superfícies acessíveis ao gato. Ele não devida deslocar o parafuso da perna. "Você vai ficar admirado com a rapidez da sua adaptação", disse o veterinário. Seria mesmo verdade?

Optei pela lavanderia, que é iluminada por uma janela alta e sem parapeito. Arranjei uma cesta rasa, uma caixa de areia para as necessidades, e uma tigela para a água. Excetuando a perna aparafusada, o gato-de-guarda estava se sentindo em forma. O pelo readquirira o brilho, a cauda acenava para frente e para trás, o olhar penetrante dominava o meu. Só a perna ferida, raspada até o quadril e costurada em vários lugares, estragava o efeito da sua majestosa cólera. Ele dava a impressão de um monarca irado a quem faltasse uma perna da calça.

Começaram as semanas de recuperação. Estabeleci uma rotina de visitas frequentes: ia levar-lhe as refeições, limpar a caixa de areia e soltá-lo durante meia hora todas as noites, para que ele se sentasse no meu colo. Disto ele gostava, e para comprová-lo, ronronava. Mas, quando eu o carregava novamente para a cela, ele me agredia e me acertava com os dentes ou as unhas, toda vez que sua rapidez era maior que a minha. Ao fechar a porta, eu sentia a fúria no seu olhar e ouvia a sua pergunta muda: Por quê?

Em princípios de maio voltei, com o gato-de-guarda, ao veterinário, para que este retirasse o parafuso da perna. Osso e cartilagem se haviam soldado o suficiente para permitir que a natureza completasse a recuperação. Mas nem mesmo nesse dia ele teve alta para sair da cela. A perna, agora ligeiramente estendida, exigia mais tempo para sarar. Em julho ela já lhe permitia ir de um aposento ao outro; depois, da casa ao quintal, e, por fim, até os campos que ele adorava.

Lá ia ele, trotando em compasso de três por quatro, à procura dos velhos caminhos, conferindo os seus mirantes, ampliando os limites do seu território. Volto a encontrar o seu olhar ao nascer do Sol, em cima do beiral do telhado, ao longo da borda da escada, no alto da cerca. Às vezes passeia comigo, mas não por muito tempo. Com uma olhadela para trás, sem pestanejar, retira-se, cauda erguida, para seguir o seu caminho aveludado.

Nosso mundo é tão bem esquadrinhado, tão bem explicado, que ansiamos pelo que é extraordinário, querendo acreditar que haja vida em outras estrelas; mas...olhe outra vez. Talvez haja uma realidade paralela logo acima da sua cabeça... um gato-de-guarda com uma perna torta e ferozes olhos dourados. Se houver, não tire. Ele é boa-praça.



(texto publicado na revista Seleções nº 136 - tomo XXIII - setembro de 1982)

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