Noventa anos antes de Vasco da Gama descobrir a rota para as Índias, o almirante chinês Zheng He percorreu mais de trinta países da Ásia e da África. Suas frotas reuniam dezenas de gigantescos navios e - surpresa - não colonizavam nem escravizavam.
Imagine se, em vez de português, você hoje falasse chinês. No que dependesse de um almirante chamado Zheng He, poderia ser verdade. Entre 1405 e 1433, ele comandou uma imensa frota que percorreu a Ásia e o leste da África, até a atual Tanzânia. Faltou pouco para dobrar o Cabo da Boa Esperança, na pontinha do continente africano - o que o português Bartolomeu Dias só faria em 1488 - e achar o caminho para a América. Tudo isso oito décadas antes de exploradores cujos nomes o Ocidente sabe de cor, como Cristóvão Colombo.
Muitas diferenças, porém, separam as sete expedições de Zheng He das similares ocidentais. A primeira delas era bem visível: reunindo até 28.000 homens e 317 navios (alguns mais compridos que um campo de futebol), suas esquadras eram colossos flutuantes. Mais: pelo menos desde 1117 - setenta anos antes dos europeus - os chineses já usavam a bússola para navegar. Também dividiam o casco do navio em gomos, evitando que se inundasse todo em caso de acidente, truque que os ocidentais levariam séculos para descobrir.
Um eunuco esperto
Zheng He era uma figura que não seria encontrada em nenhum corte europeia da época. Filho de muçulmanos, nasceu em 1371 na província de Yunnan, a última em poder da dinastia mongol Yuan. Quando a dinastia Ming (1368-1644) tomou-a, seguiu a tradição: capturou e castrou os filhos dos prisioneiros. Entre eles estava o futuro almirante, enviado aos 13 anos ao príncipe Zhu Di. Descrito como um rapaz inteligente, hábil na guerra e na diplomacia, o jovem eunuco logo ganhou a confiança do nobre. Assim, quando o príncipe arrancou o trono imperial das mãos do próprio sobrinho, deu a Zheng He a missão de montar a frota, apesar de sua idade - 35 anos -, considerada avançada para a época.
O mais curioso é o uso que se deu a essa esquadra tão poderosa. Embora os escritos de Zheng He tenham sido destruídos quando a China encerrou suas grandes navegações, não há notícia de que o almirante tenha colonizado ou escravizado as nações que visitou. É verdade que não levava desaforo para casa, mas a ideia não era usar a força, e sim demonstrá-la - sem deixar dúvidas.
A armada era carregada de porcelana, seda, tesouros e presentes que distribuía entre os soberanos estrangeiros. Em troca, exigia apenas que reconhecessem a China como o centro do mundo e seu imperador como o tal. "E, com aquela muralha de navios ancorada bem ali, ninguém recusava", explicou o historiador belga criado no Brasil Eric Vanden Bussche, que estuda chinês em Pequim para se aprofundar na compreensão da história do país.
Um sinal dos deuses
Quando o príncipe Zhu Di subiu ao "trono do dragão" e se tornou o imperador Yong Le (1402-1424), levou consigo algumas preocupações. Embora seu sobrinho deposto fosse dado como morto, corriam boatos de que ele estaria foragido. E se reaparecesse para reivindicar o poder?
Esse foi o primeiro motivo pelo qual Zheng He reuniu a mais impressionante frota da História da China. De uma só tacada, o imperador pretendia localizar o fujão e deixar bem claro para os "bárbaros" que era ele quem mandava.
"Bárbaros", no caso, eram todos que fossem estrangeiros ou etnias minoritárias. Hoje, 94% dos chineses pertencem à etnia han e os 6% restantes dividem-se entre outros 55 grupos. Naquele tempo não muito diferente. "Mesmo sob o domínio da dinastia mongol (1271-1368), a maioria chinesa sempre tratou de preservar suas características culturais", conta Bussche. Para manter a paz com os vizinhos, o país negociava - mas sob os olhos vigilantes dos burocratas da corte. Esses funcionários eram fiéis aos ensinamentos do sábio Confúcio (551-479 a.C.), e Confúcio torcia o nariz para estrangeiros e comerciantes.
Há, no entanto, quem prefira outra explicação para o controle do comércio. "Mais do que a ética confuciana, pesava o desejo do Estado de controlar o lucro", disse o inglês John Moffett, responsável pela biblioteca do Needham Research Institute da Universidade de Cambridge, centro de estudos chineses na Inglaterra que é referência em todo o mundo.
Unicórnios celestiais
O imperador Yong Le, de qualquer forma, andava de olho nas riquezas dos países estrangeiros. O seu entusiasmo aumentou ainda mais quando começaram a entrar na China, ao fim de cada expedição, raridades como marfim, ervas, pedras preciosas, chifres de rinocerontes, incenso e madeira exóticas. Comoção mesmo houve com a chegada de um par de girafas, que foram declaradas "unicórnios celestiais" - um sinal de que os deuses aprovavam as navegações.
Os deuses, talvez. Os chineses mesmo tinham suas dúvidas. Desde 1403, todas as províncias contribuíam como podiam com a frenética atividade no estaleiro de Nanquim (então capital do país), que ocupava vários quilômetros á margem do rio Yang Tsé. Matérias-primas, artesãos e operários eram deslocados em massa, e os cobradores de impostos espremiam os contribuintes. "As necessidades da frota eram tão imensas que, desde o início, ela foi um ônus para a população", diz Louise Levarhes em seu livro When China Ruled the Seas (quando a China governava os mares), um extenso relato sobre as navegações de Zheng He.
O império de portas fechadas
Quando tinha meio mundo ao seu alcance, a China desistiu dele. Depois da morte do imperador Yong Le, em 1424, só mais uma expedição partiu. Os soberanos seguintes jogaram o país num período tumultuado. Ora ele abria suas portas, ora fechava. Venceram os que achavam que a frota só torrava dinheiro, enquanto a população sofria com epidemias e fome e tinha de pagar a conta de obras como a mudança da capital de Nanquim para Pequim.
O fato é que, nos 400 anos seguintes, a China trancou-se a chave. Pela frestinha que sobrou, o comércio fluia sob o olhar quase sempre rigoroso da corte. Construiu navios para a navegação oceânica chegou a ser considerado alta traição. Toda a experiência marítima se perdeu. "Quando o Ocidente abriu seu caminho a bala para dentro da China, com a Guerra do Ópio (1839-1842), encontrou uma nação em desvantagem tecnológica", conta Moffett.
O pesquisador inglês ressalta que muitos historiadores acreditam numa vocação chinesa para o isolacionismo, um desconfiança de tudo o que é estrangeiro - mas ele próprio discorda. Na sua opinião, o abre-e-fecha seria fruto das infindáveis rusgas políticas e também da arrogância. "Falar em isolacionismo pressupõe medo do que está lá fora. Os chineses não tinham medo; eles achavam que eram o centro do mundo e não precisavam dos outros."
Ainda assim, como se explica que um marco tão grandioso da História seja quase ignorado no lado oeste do planeta? "Nossa perspectiva é mesmo eurocêntrica", justifica Bussche, lembrando que até a História do Brasil ensinada aqui começa com o descobrimento. E antes?
O chinês do milênio
Zheng He, o descobridor pioneiro, não chegou a ver as grandes mudanças no império. Até onde se sabe, morreu no mar, em 1433, aos 62 anos. Seus escritos foram queimados. Não se conhecem nem retratos dele. Talvez não tenham sido feitos. "Retratos, na China daquela época, só de gente muito importante", conta Moffett.
Mas, se a vingança é um prato que se come frio, o almirante saboreia a dele, postumamente. Há pouco, a revista Life escolheu as 100 personalidades do milênio. É verdade que Colombo ficou no 2º lugar e Fernão de Magalhães, no 7º. Mas Zheng He foi premiado com o 14º posto, bem à frente dos compatriotas Kublai Khan (23º) e Mao Tsé-tung (28º). Com um cartaz desses, quem precisa de retrato?
(texto publicado na revista Super Interessante nº 2 - fevereiro 1999)
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