sábado, 7 de dezembro de 2013

Fama de mau - Juliana Bastos Marques


As loucuras do mais polêmico dos imperadores romanos são bastante conhecidas, mas será que são mesmo verdades?

Nenhum imperador sintetiza tanto a imagem de degeneração da aristocracia romana quanto Nero. No imaginário popular - e especialmente no cinema de Hollywood -, ele aparece como um homem tomado pelos excessos da luxúria e da gula, cruel e com um insano ímpeto "artístico". Diversos historiadores, porém, têm procurado rever essa imagem estereotipada, demonstrando que ela foi, até certo ponto, construída deliberadamente pelas fontes históricas antigas.

Para compreender Nero temos como fontes principais textos fragmentados de três historiadores romanos: Tácito e Suetônio, no início do século 2 d.C., e Dion Cássio, no século 3 d.C. Eles pertenciam ao ambiente aristocrático da elite administrativa e do Senado, que sofreu com perseguições e execuções sob ordens do imperador. Por isso, muitos estudiosos de hoje apontam que o retrato construído de Nero foi possivelmente distorcido e manipulado para parecer mais terrível do que a realidade.

De certo modo, Nero fez por merecer parte de sua fama. Nascido durante o reinado do seu tio, o também famigerado Calígula, foi criado fora do ambiente ardiloso da corte Júlio-Claudiana. Já adulto, foi adotado (como era comum no mundo romano) pelo imperador seguinte, seu tio-avô Cláudio. Sua mãe, Agripina, foi autora de uma série de maquinações para aproximar-se do poder, como manipular a lei para casar-se com o tio, Cláudio. Ela assegurou que seu filho fosse nomeado imperador imediatamente após o assassinato de Cláudio, em que provavelmente tomou parte, e também eliminou o filho adolescente deste, Britânico, outro possível candidato ao trono.

A influência de Agripina foi marcante nos primeiros anos do reinado de Nero, ainda pacíficos e prósperos. Nero se dedicava ao canto, ao teatro e às corridas apenas dentro dos muros do palácio real e reinava sob a supervisão da mãe, do tutor Sêneca e do administrador geral de Roma, Afrânio Burro. Mas em 59 d.C. a situação mudou. Sentindo-se ameaçado pelas intrigas políticas de sua mãe, resolveu assassiná-la.


Sem piedade

A repercussão da morte de Agripina marcou Nero como assassino cruel e sem limites. Em 62 d. C., Burro faleceu, e Sêneca afastou-se da corte, deixando o imperador sozinho para governar e lidar com o constante medo de traição e golpe. Logo ele também mandaria matar sua esposa, Otávia, e se casaria com a amante, Popéia Sabina. Em 65 d.C., conforme narra o historiador Tácito, Nero descobriu uma conspiração dos senadores contra si e foi implacável: mandou executar dezenas de aristocratas. No ano seguinte, outra conspiração levou à morte o grande símbolo da liberdade senatorial, o estóico Trásea Peto. A descrição das execuções é tão extensa que Tático chega a desculpar-se por escrever sobre tanto derramamento de sangue.

Em 64 d.C., um incêndio destruiu boa parte da cidade. Nenhum dos autores acusa Nero diretamente pelo incêndio, e Tácito até mesmo afirma que ele dera ordens para abrigar a população dentro das áreas não atingidas. Mas a fama de crueldade corria mundo, e houve quem jurasse que ele contemplava as chamas do topo de seu palácio, tocando lira e cantando.  A verdade é que Nero culpou os cristãos pelo incêndio e promoveu a primeira perseguição à nova seita, na qual morreram são Pedro e são Paulo. Os cristãos serviam como bode expiatório perfeito, já que eram hostilizados pela população pagã. Mas a punição foi tão cruel que o próprio povo sentiu pena dos acusados.


Alma de artista

Há aspectos positivos na vida de Nero, muitas vezes ofuscados por tantos crimes. Depois do incêndio, a cidade reconstruída ficou mais segura e bem planejada - apesar das despesas com o enorme palácio que o imperador mandou construir para si, a Domus Aurea. Nero organizou festivais culturais e patrocinou a cultura grega, e foi um grande entusiasta da música e do teatro. Participava sempre (e vencia) os festivais que promovia, que fizeram muito sucesso entre os romanos e alguns aristocratas.

Os senadores só começaram a condenar com veemência as atividades artísticas de Nero quando ele resolveu apresentar-se nos palcos como profissional, o que era considerado indigno. Acusando Nero de ser assassino e ator, o general Júlio Vindex iniciou um revolta na província da Gália Lugdunense (atual norte da França), que quase foi derrotada, não fosse pelo pânico que gerou no imperador. Decretado inimigo público pelo senado, ele fugiu e se matou, exclamando, segundo Suetônio, "Que artista morre em mim!"



(texto publicado na revista Desvendando a História nº 14 ano 3)






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