domingo, 11 de outubro de 2015

O direito de ser canhoto - Demetrius Paparounis


Politicamente a esquerda está em baixa. Já os canhotos, embora minoria, continuam fazendo sucesso.

Os Estados Unidos têm um presidente de esquerda. O maior ídolo da torcida do Corinthians é um craque de esquerda. Na Fórmula 1, o último tricampeão brasileiro é um piloto de esquerda. O comunismo de volta? O "perigo vermelho"? Não, nada d isso. Bill Clinton, ou mesmo seu antecessor, George Bush, Neto, Ayrton Senna e Edgar Scandurra são canhotos, como 10% da população mundial. Deram sorte de ter nascido depois da guerra surda movida contra todos que demonstrassem maior habilidade e força com a mão esquerda. Porque, até poucas décadas atrás, ser canhoto era considerado falta de educação: pais e educadores aplicavam uns bons corretivos para a criança perder o "vício".

Usou-se toda espécie de violência contra quem não fosse destro. Se não bastassem as dificuldades de viver num mundo feito para a mão direita, de abridores de latas a instrumentos musicais, a negação da natureza dos canhotos causou-lhes até problemas psicológicos.

Casos como o da assistente social Yara Maria Silveira Daher, de 54 anos, que enfrenta dificuldades para escrever por ter sido forçada a usar a mão direita. "Na escola, as professoras amarravam meu braço esquerdo no pescoço. Mas nunca consegui ter uma coordenação motora satisfatória com a direita, e minha letra sempre foi um garrancho. Além disso, sou bastante estabanada. Vivo com medo de esbarrar nas coisas", diz ela.

Além dos relatos das vítimas, a repressão foi constatada em pesquisas do psicólogo americano Stanley Coren, que, em 1979, analisou a incidência do canhotismo nas diversas idades. Entre os jovens, era de pouco mais de 10%. Já na faixa etária de 80 anos, portanto entre os idosos nascidos no início deste século, praticamente não havia canhotos. Isso porque, naquela época, a perseguição contra os de esquerda só terminava com a conversão total para a direita. Um ledo engano dos conspiradores: mesmo renegando a natureza, a maioria dos "destros convertidos" jamais abandona o canhotismo, que fica eternamente marcado num ambiente inviolável às pressões sociais: o código genético, que passa de pai para filho.

Herança genética

Um casal de canhotos tem 46% de chances de ter um filho também canhoto, contra apenas 2% se pai e mãe forem destros. Quando só um dos pais é canhoto, a probabilidade é de 17%, afirmam os especialistas. Essa estatística mostra que o canhotismo é preponderantemente hereditário, mas sugere outras causas possíveis. As teorias da herança genética não conseguem explicar completamente o fenômeno. Pensou-se inicialmente que o canhotismo fosse um fator recessivo, determinado por um gene, como acontece com a cor dos olhos, por exemplo. O filho de um casal de olhos azuis terá necessariamente a mesma cor de olhos, isto é, 100% de chances, o que comprova a teoria. Deveria acontecer o mesmo no caso dos canhotos, mas já se viu que a história não é bem assim.

Foi preciso como que dividir o cérebro ao meio para se obter uma explicação mais convincente. Os cientistas já sabiam que o cérebro exerce um comando cruzado nas funções motoras do organismo humano: o hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo e o hemisfério direito comanda o esquerdo. Em 1982, o neurobiologista americano Roger Sperry ganhou o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia com estudos que mostravam uma assimetria entre os dois hemisférios e a especialização de cada um. Na maioria das pessoas, segundo Sperry, o hemisfério esquerdo, além de comandar o lado direito do corpo, controla os aspectos racionais da linguagem (compreensão). Já o hemisfério direito cuida, entre outras coisas, da sensibilidade artística e dos aspectos afetivos. É curioso lembrar que o coração - órgão símbolo da afetividade -, fica exatamente do lado esquerdo, portanto também é comandado pelo hemisfério direito do cérebro.

O papel da linguagem

De acordo com a Neuropsicologia, há mesmo uma relação entre o desenvolvimento da linguagem e o fato de 90% da população ser destra. Isso não ocorre com os outros animais. Neles, a proporção de canhotos para destros é, em geral, de 50%. Qual, então, o papel da linguagem?

Como na evolução humana a linguagem teve uma importância fundamental, os destros se tornaram maioria, explicam os neurologistas. É uma teoria polêmica, que pode ser resumida da seguinte maneira: o ancestral humano seria destro e canhoto em proporções iguais, mas teria a razão e a sensibilidade/abstração já comandadas por diferentes hemisférios do cérebro. Para evoluir, se valeu da linguagem, privilegiando um dos hemisférios cerebrais, o esquerdo, que, como já vimos, comanda o lado direito do corpo. Através das gerações, essa opção se consolidou geneticamente, aumentando a proporção de destros, ao preço de atravancar o desenvolvimento da sensibilidade e da emoção. Uma pequena parcela da população teria mantido a predominância do uso dos membros esquerdos, estimulando o hemisfério direito do cérebro, que comanda a sensibilidade. Isso explica a suspeita de que os canhotos talvez tenham maior capacidade de abstração e melhor desempenho artístico. Mas essa teoria não tem o aplauso unânime dos especialistas. Pesquisas feitas nos Estados Unidos não verificaram qualquer diferença entre destros e canhotos em testes de raciocínio, abstração e sensibilidade artística.

Ainda em 1974, a pesquisadora americana Marion Annet incendiou a polêmica sobre a origem do canhotismo, propondo um modelo genético que colocaria em dúvida a saúde mental de grande parte das pessoas com preferência pelo lado esquerdo. Segundo ela, a maioria dos indivíduos possuiria um gene que os direcionaria a serem destros. Na ausência desse gene, a pessoa poderia ser tanto destra quanto canhota, ao acasdo. Até aí tudo bem. Mas Annet sugeriu também que uma parcela das pessoas que teriam esse gene acabava se tornando canhota devido a lesões cerebrais sofridas antes do nascimento - provocadas por tombos sofridos pela mãe - ou, ainda, por acidentes durante o parto. Simplificando: o hemisfério esquerdo do cérebro sairia do parto com lesões. Assim, a pessoa acabaria tendo de se virar com o outro hemisfério, se tornando canhota.

Pacto com o diabo

Essa teoria não pode ser rotulada simplesmente como mais uma faceta da perseguição anti-canhoto. Ao contrário dos argumentos usados na Idade Média, quando se aproveitavam trechos confusos da Bíblia para afirmar que o Diabo era canhoto e que portanto o canhotismo era um traço satânico, o raciocínio proposto em 74 por Annet se baseia em pesquisas científicas. Sabe-se, por exemplo, que entre retardados mentais, epilépticos, crianças com dificuldade de aprendizado e pessoas com lesões cerebrais precoces a proporção de canhotos é de 20%, o dobro que entre as pessoas normais (10%). O problema em saber se o canhotismo decorre de traumatismos é que só exames caríssimos, como ressonância magnética, são capazes de diagnosticar uma lesão cerebral tão pequena.

É uma teoria meio alarmista. A maioria esmagadora dos canhotos não tem problemas neurológicos. Mas é preciso corrigir um erro grave praticado em muitas escolas. Às vezes, a criança tem dificuldades de aprendizado e o professor diz que o problema é só de ordem psicológica, originário de problemas emocionais na família etc. Com isso, afasta a possibilidade de uma investigação neurológica. Essa dificuldade de aprendizado em canhotos por lesões cerebrais é explicada pela Neurologia da seguinte maneira: a criança, que naturalmente seria destra, sofreu a lesão no hemisfério esquerdo do cérebro, tornando-se canhota. O distúrbio continua afetando a linguagem, causando problemas como a dislexia: a criança pode trocar o "r" pelo "l'" na hora de ler, como o Cebolinha das histórias infantis. Mas isso tem cura. Alguns exercícios com acompanhamento de um fonoaudiólogo resolvem o problema.

Alguns especialistas acreditam que uma eventual lesão pode ainda comprometer a coordenação motora dos membros direitos da pessoa. De fato os canhotos reclamam mais do lado fraco que os destros. "Tenho uma enorme dificuldade com a direita. Mal consigo segurar o material da escola com o meu braço "fraco", confirma a estudante Gabriela Strelkow, de 15 anos. Mas essa dificuldade não pode ser automaticamente associada a distúrbios cerebrais, ressaltam os especialistas.

A hipótese do canhotismo ter origem em lesões cerebrais levou a exageros, como o extremismo do neurologista americano Paul Bakan, que nos anos 70 defendeu a hipótese de que todo canhoto é, essencialmente, um caso patológico. Pobre Leonardo Da Vinci, um dos maiores gênios da humanidade. De acordo com o radicalismo de Bakan, certamente destro, o famoso autor da Mona Lisa era doente e não sabia.

Como se pode notar, a Ciência ainda não conseguiu criar uma fórmula definitiva para explicar por que razão uma maioria tem preferência pelo lado direito do corpo, enquanto uma minoria opta pelo lado esquerdo. Uma minoria de 10%, vale ressaltar. Só no Brasil, existem aproximadamente 15 milhões de canhotos, que, apesar de não sofrerem a mesma perseguição de antigamente, continuam enfrentando uma série de dificuldades. O mundo é feito, mesmo, para os destros. Por isso, ter um canhoto em casa às vezes pode se transformar num problema. Eles precisam de tesouras, abridores de latas e uma série de utensílios especialmente feitos para a mão esquerda.

O problema é que esses objetos só podem ser encontrados nos Estados Unidos e na Europa. Em 1980, a indústria brasileira ensaiou um interesse por esse mercado, mas as únicas experiências de que se tem notícia em São Paulo não duraram muito. A loja Só Canhotos, criada naquela época, faliu cinco anos depois, e a rede de papelarias Abreu, que chegou a vender alguns objetos, desistiu da ideia por causa da baixa procura. Até mesmo a Associação Brasileira dos Canhotos, fundada no início dos anos 80, acabou desativada por falta de interessados.

"Os canhotos deveriam exigir mais os seus direitos. Não é o caso apenas de tesouras e abridores de latas. Todos os equipamentos de trabalho são feitos para os destros. Dos balcões de caixa de supermercado, onde o funcionário precisa de movimentos precisos para digitar o valor das compras na máquina registradora, às linhas de montagem, as desvantagens dos canhotos são enormes", constata o pesquisador Ricardo da Costa Serrano, do Ministério do Trabalho. Nas escolas que usam cadeiras universitárias, com um apoio lateral que funciona como mesa, o problema é o mesmo. Apesar de existir lei obrigando que 5% dessas cadeiras tenham apoio do lado esquerdo, é raro encontrar uma que seja feita especialmente para canhotos.

Mas, mesmo enfrentando todas essas dificuldades, pais e educadores têm de se conscientizar de que a própria criança deve fazer a opção a respeito de que mão usar para escrever ou descascar uma fruta. Se tiver preferência pelo lado esquerdo, que seja canhota. Quanto aos mais velhos que foram obrigados a  trocar de mão, na maioria das vezes é muito difícil voltar atrás e restabelecer o canhotismo. O mal já está feito e o melhor mesmo é conviver com isso.


Consultores: Cândida Pires de Camargo, Osmar de Oliveira e Sérgio Schmidt





(texto publicado na revista Saúde é Vital! nº 113 - fevereiro de 1993)

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