domingo, 12 de março de 2017

Uma homenagem à nonna - Rogério Fasano


Um saboroso livro com as origens de doze receitas clássicas da gastronomia italiana nos ajuda a entender por que a massa é inigualável em sua magnífica simplicidade

Se você é como eu, avesso aos modismos, provavelmente não é celíaco - e se você não é celíaco, e portanto se dá muito bem com glu´ten, vai morrer de alegria com o livro Massa! Mangia che Ti Fa Felice, de J. A. Dias Lopes, diretor de redação da revista Gosto e colunista do site de VEJA. São doze receitas clássicas de massas italianas, magnificamente envoltas em histórias muitas vezes inéditas, divertidas, repletas de personagens. Você vai descobrir quais eram os pratos preferidos de Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Frank Sinatra, entre tantos outros. Costumo dizer que para entender a cozinha italiana e sua simplicidade é "quase necessário" ser italiano. Trata-se de frequentar restaurantes, sim, mas é fundamental conhecer a cozinha praticada nas casas das famílias. Dias Lopes foi correspondente de VEJA em Roma entre 1987 e 1991, no tempo de João Paulo II, de Maradona no Napoli e do apogeu de Luciano Pavarotti. A temporada romana lhe dá o direito a um passaporte do bem viver italiano.

Infelizmente a cozinha italiana costuma viajar mal - perde sua originalidade, sua sutileza, quando praticada em outros endereços. Vários abusos são cometidos para agradar aos gostos locais. Vejam por exemplo o que ocorre em Nova York com a enorme quantidade de alho usada na maioria dos restaurantes italianos por lá. Muito diferente da Itália, onde seu perfume é empregado livremente, e o alho é usado inteiro, para depois ser retirado do molho, e não triturado a ponto de nos fazer perder o sono. Vejam por aqui nossas pizzas e seus recheios - eu pago um jantar ao primeiro que, na Itália, encontrar uma pizza portuguesa, aliás, pago dois jantares.

O badalado Guia Michelin consegue identificar na Itália apenas cinco ou seis restaurantes dignos da terceira estrela (com um detalhe: quase todos os eleitos se parecem muito mais com restaurantes franceses do que com italianos). Eu facilmente acharia no mínimo uns vinte. Os italianos não aprovam os guias internacionais, costumam deixá-los de lado. Reclamam por se sentirem julgados por "não italianos". Tampouco dão bola para quem é o melhor chef do mundo. Para um italiano, o melhor e inigualável chef será sempre a mãe da sua mãe ou a mãe do seu pai, ou seja, sua nonna.

O mérito de Massa! é saber respeitar essa peculiaridade. Longe de ser postura ufanista, é uma constatação inescapável. Italianos não só amam comer como amam e defendem sua gastronomia com fanatismo de torcedor de futebol. Meses atrás, eu discutia com o meu colega e amigo Giuseppe Cipriani sobre a origem do verdadeiro molho "all'amatriciana" que nasceu na cidade de Amatrice, terrivelmente devastada no recente terremoto - uma tristeza gigantesca. Ele o serve sem tomates e nós, assim como está no livro, o servimos com eles. As duas versões estão corretas, como costuma ocorrer com frequência na culinária italiana. A discussão com Cipriani só se encerrou ao percebermos que na mesa ninguém mais aturava a nossa conversa, coisa de oriundi, atavicamente preocupados com a precisão nas receitas e matérias-primas de primeiríssima qualidade. Gostamos dos sabores clássicos, já testados por séculos, e vivemos muito felizes assim. Por isso, mangia che ti fa felice, sem encessidade de tradução. 

Admiro três cozinhas: a italiana, a francesa e a japonesa. Confesso certa ignorância sobre as outras, mas somente na cozinha italiana e nos italianos enxergo tanta alegria ao redor de uma boa mesa. Disse aqui que a cozinha italiana viaja mal. Basta ver as aberrações de versões de "carbonara" que viram qualquer coisa - e por aí vai. Quando ela é executada por "não italianos", também enxergo coisas muito erradas. Outro dia um grande restaurante francês de um chef super-hiperpremiado me serviu um ravióli de camarão com um camarão inteiro dentro. Errado. Seria o mesmo que pôr um pedaço de carne inteiro dentro de um pastel - o recheio tem de ser uma "mousse" de camarão, como manda a norma.

De todas as receitas apresentadas no livro, não concordei com uma única - o verdadeiro pesto, que aprendi em Gênova, é servido com vagens e batatas. E o alho - usado com muita, muita parcimônia, tal qual o vermute no dry martini - deve ser quase inexistente. E senti falta da minha pastasciutta preferida, o linguine alle vongole, que também pode ser feita "in bianco", sem tomate, ou "in rosso", com tomates-cereja inteiros, nunca com molho. Aliás, os vôngoles encontrados no Brasil são muito bons, diferentemente dos mariscos, que parecem feitos pela Pirelli.

Para um jovem estudante de gastronomia, hoje, não deve ser muito fácil encontrar caminhos no confuso mundo da cozinha, de competições televisivas e artificiais medalhas olímpicas, destinadas aos melhores restaurantes, como se fosse possível escolhê-los tal qual a Fifa faz com jogadores de futebol. Enfim, se você acha que servir um clássico e simples tonnarelli cacio e pepe é banal, saiba que não é não. Nem sempre seremos obrigados a ser chefs autorais e a fazer pratos que contenham no mínimo trinta ingredientes - eu sugiro não mais do que quatro, até porque na cozinha autoral cansamos de ver vários autores copiando outros autores, num círculo vicioso. O fundamental é servir sempre a gastronomia de que você mais gosta. A diferença entre um clássico mais ou menos executado e um perfeitamente executado é que define a diferença de um grande cozinheiro, um grande chef e um restaurateur. Veja quão rara é uma sauce béarnaise, mesmo na França. Daí o termo "desandar a maionese", ser tão comum.

Caro jovem, se você estiver a caminho de seu tatuador preferido, sugiro que passe antes em uma livraria, adquira Massa!, e peça ao tatuador que marque na pele uma das excelentes fotos de Reinaldo Mandacaru que ilustram o livro - pode ser a da lasagna alla bolognese na parte direita do tórax, garanto sucesso. Em último caso, tatue uma Sophia Loren ou um Marcello Mastroianni, sucesso redobrado. E que juntos reclamemos o mais rápido possível por uma vacina anticelíaca, porque massa é espetacular e engorda menos que dois pares de sushis.


(texto publicado na revista Veja edição 2499 - ano 49 - nº 41 - 12 de outubro de 2016)

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