domingo, 6 de abril de 2014

É assédio moral? - Simone Costa e Daniela Macedo

Há coisa de duas ou três décadas, não havia sequer nome para aquela situação desagradabilíssima que às vezes se instala no trabalho: a do chefe que cotidianamente humilha ou ameaça os subordinados.

O assédio moral só ganhou essa caracterização em meados dos anos 1980, quando começou a ser estudado pela medicina e pela psicologia. Hoje, não há país civilizado que não disponha de alguma legislação sobre o tema. No Brasil não há dados consolidados sobre o total de casos de assédio moral reportados à Justiça, mas os números dos estados mostram que houve um aumento acentuado nas denúncias. No Ministério Público do Trabalho de São Paulo, de 359 inquéritos por assédio moral coletivo em 2010 passou-se para 792 em 2013, um crescimento de 120%. Na Bahia, os processos no Tribunal Regional do Trabalho saltaram de 1 em 2001 para 981 em 2010, segundo levantamento feito por André Luiz Souza Aguiar, doutorando em ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para entender o que caracteriza o assédio moral e como lidar com ele, o Guia conversou com especialistas de diferentes áreas.

O que é assédio moral?

O que caracteriza esse tipo de abuso é a repetição continuada do ato de prejudicar o subordinado ou humilhá-lo. Se o chefe ofende um empregado durante uma reunião ou numa conversa reservada, mas esse é um ato isolado, ele não constitui assédio moral. "A pessoa que se sentiu ofendida pode até processar o agressor por dano moral. O que distingue o assédio, porém, é a reiteração desse tipo de ato", explica a procuradora Renata Coelho Vieira, do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Campinas, São Paulo. Mas atenção: criticar o trabalho do funcionário não é assediá-lo - é um fato da vida profissional. O que é inadmissível é que a crítica seja feita sem base (ou seja, que tenha o caráter de perseguição) ou como insulto ou achaque.

Por que ele acontece?

"O objetivo do assédio moral pode ser aumentar a produtividade, forçar um empregado a pedir demissão para que a empresa não tenha de arcar com as verbas rescisórias, fazer com que uma gestante saia do emprego abrindo mão da estabilidade ou evitar que alguém seja promovido", exemplifica a médica do trabalho Margarida Barreto, coordenadora da Rede Nacional de Combate ao Assédio Laboral e outras Manifestações de Violência no Trabalho. "Como ainda não há uma lei federal específica, o Judiciário leva em conta a regra geral da Constituição, que trata do respeito à dignidade da pessoa humana", explica Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, professor de direito trabalhista da USP e juiz da Vara do Trabalho de Cajamar, São Paulo.

Como são os atos de assédio moral?

Há casos em que é relativamente simples caracterizá-lo. Por exemplo, quando a prática de um chefe ou de uma empresa apontar, na frente dos colegas, os profissionais cujo rendimento ficou aquém do esperado e ridicularizá-los ou achacá-los. Mas nem sempre o assédio é assim tão explícito. "Às vezes, o gestor assedia o funcionário quando estão apenas os dois, ou liga para a casa dele fazendo cobranças e ameaças veladas", explica Oliveira.

Quem assedia quem?

O assédio moral pode ocorrer entre chefe e subordinado ou entre colegas. Mas, segundo os especialistas, a maioria dos casos vai além das relações interpessoais. "Em muitas situações, o assédio moral é organizacional: faz parte do método de gestão daquela empresa", explica a procuradora Renata. "Julguei um caso em que uma companhia de cimento foi comprada por outra e seus diretores viveram todas as dificuldades para continuar trabalhando. A intenção da empresa que passou a comandá-los era forçar o pedido de demissão do grupo para evitar os gastos trabalhistas", conta o juiz Oliveira.

Como se deve enfrentá-lo?

Se o assédio não é uma prática generalizada na empresa, mas ocorre particularmente entre um funcionário e seu gestor, pode-se tentar uma conversa. "A pessoa que se sente agredida tem de deixar claro que não admite o tratamento desrespeitoso. Se o assédio persistir, deve repetir a advertência em público", diz John Cymbaum, sócio da FTR Coaching. (É preciso ter o cuidado de não usar termos ofensivos e não deixar que a conversa evolua para o bate-boca: se perder a lisura ou o controle da situação, o reclamante vai perder também a razão.) É válido, inclusive, gravar a conversa. "Desde que não se trate de uma conversa alheia, mas da própria pessoa com seu gestor, a gravação é aceita pela Justiça", explica a procuradora Renata. Outro passo é procurar o setor de recursos humanos ou, se a empresa o tiver, o comitê de ética. "Mas não basta ir lá queixar-se. É necessário ter tudo documentado, fazer uma reclamação por escrito e guardar uma cópia", diz Margarida Barreto. No caso de assédio generalizado, o empregado deve procurar ajuda externa, como as delegacias do Ministério do Trabalho e Emprego, os sindicatos ou o Ministério Público do Trabalho. "No MPT, a denúncia pode ser sigilosa, feita por telefone ou pela internet. Será instaurado um inquérito, e o MPT pode entrar com uma ação coletiva", diz Renata Coelho Vieira.

O que o assédio moral causa?

A humilhação recorrente e a incapacidade de lidar com metas inatingíveis podem gerar uma série de problemas de saúde. "O mal-estar vai aumentando e o profissional começa a somatizar sua ansiedade. Ele pode sentir náuseas, ter gastrite, deixar de comer ou, ao contrário, comer em excesso, até chegar a manifestar uma problema de saúde mental, como depressão ou síndrome do pânico", diz Margarida Barreto.

Como se documenta o assédio?

É essencial guardar e-mails, memorandos, conversas gravadas e atestados médicos. "Se houver afastamento por problema de saúde, deve-se pedir ao médico que anote no atestado o código da classificação internacional de doenças (CID), pois isso será importante caso haja uma ação na justiça", explica Margarida. Recomenda-se, ainda, fazer um diário com anotações sobre quem presenciou as cenas de assédio e a data e o horário em que aconteceram. "Isso não tem valor legal, mas ajuda a não esquecer detalhes que podem ser importantes num julgamento", diz Renata. No caso de o funcionário se sentir ameaçado diretamente, ele pode entrar com um pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho. "Desde que tenha elementos suficientes para comprovar o assédio moral, o empregado para de trabalhar alegando que está fazendo isso por culpa do empregador. Ele vai receber todos os direitos trabalhistas e ainda a indenização por assédio moral", explica o juiz Oliveira.

A arte da conversa

Na maioria das empresas, os funcionários tornam-se chefes porque são bons no que fazem. Mas, segundo os especialistas, só agora as organizações começam a se dar conta de que é preciso preparar esses líderes especificamente para isso também - para liderar. "Quem comanda cinco ou dez pessoas influencia diretamente o desempenho desse grupo. Saber dirigi-lo é o que vai trazer resultados para a empresa", diz John Cymbaum, sócio da FTR Coaching. Entre as habilidades que a função de líder exige está a de comentar com objetividade e eficácia - e portanto com respeito - a performance dos subordinados. "A primeira regra para uma conversa é que ela seja feita em local reservado. Ressalvas feitas em público podem adquirir tom ofensivo", diz Cymbaum.

O segundo cuidado é lembrar que a crítica é feita ao trabalho, e não à pessoa. Renata Wright, gerente de recursos humanos da Michael Page, empresa de recrutamento de executivos de média e alta gestão, sugere que fazer perguntas para que haja uma interação é importante: por exemplo, "Por que você não comunicou essa dificuldade antes?". Renata também destaca o cuidado com as palavras. "Dizer a um funcionário que ele é lento pode causar insegurança e ansiedade" - um estado de ânimo que não induz ao bom desempenho e à criatividade. "O ideal é contextualizar com dados: mostrar a data em que a tarefa foi passada, o prazo estipulado, quando o funcionário conseguiu concluí-la e o que ficou faltando", diz ela.

Se o gestor tem de lidar com alguém que se melindra facilmente e tende a se fazer de vítima, ele deve tomar precauções para não vir a ser acusado de assédio moral. Se há o temor de que o funcionário interprete mal as críticas e termine por acusar o gestor, pode-se convidar um representante do RH para estar presente à conversa.

Sinal vermelho

Não é raro que o assédio moral ocorra em decorrência do assédio sexual. "Há casos de pessoas que, por não ceder às insinuações e tentativas de assédio sexual, passaram a ser assediadas moralmente no trabalho", diz André Luiz Souza Aguiar, doutorando em ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao contrário do assédio moral, o sexual prescinde de repetição para ser caracterizado como tal: basta um único episódio. E ele é considerado crime, de acordo com a Lei nº 10224, de 2001.

O que caracteriza o assédio sexual?

"Ele ocorre quando alguém se utiliza da sua posição hierárquica para conseguir favores sexuais de um subordinado. Ou seja, quando um gestor promete uma promoção em troca de relações sexuais, ou quando passa a perseguir e prejudicar o subordinado ou ameaça demiti-lo se ele não ceder. Essa intenção deve ser clara, causando constrangimento em quem é assediado. Senão, qualquer pessoa mais afetuosa ou que corteje alguém no trabalho poderia ser acusada de assédio sexual", explica o juiz Paulo Eduardo Vieira de Oliveira. O assédio pode ser tanto físico (e ir de uma sutil proximidade exagerada a contatos indevidos) quanto acontecer por meio de "cantadas" e insinuações, de forma clara ou velada, feitas pessoalmente ou em bilhetes e e-mails.

Como agir?

"Se o funcionário sofrer assédio sexual, ele pode fazer um boletim de ocorrência e, em seguida, entrar com uma ação por danos morais. Serão, portanto, dois processos, um criminal e um trabalhista", explica Oliveira. O mais frequente, conforme o juiz, é que homens assediem mulheres, mas o inverso também acontece. "E tem aumentado o número de denúncias de homens assediando homens e mulheres assediando mulheres", diz Oliveira. Já as situações em que quem assedia é um colega de mesmo nível hierárquico não estão previstas em lei, mas é possível mover uma ação por danos morais na Justiça do Trabalho.


(texto publicado na revista Veja nº 9 - ano 47 - fevereiro de 2014)






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