domingo, 30 de novembro de 2014

Sangue, suor e lágrimas: The Knick, seriado com Clive Owen - Marcelo Martins


Na série The Knick, retrato cru da medicina no início do século XX, a transpiração dos cirurgiões de pouco serve para salvar os pacientes, que morriam feito moscas

Em um bordel de Nova York, no ano de 1900, o médico John Thackery (Clive Owen) olha fixamente para as pontas de seus sapatos brancos. Uma prostituta se aproxima para comunicar que é hora de ele ir para o trabalho. Com cara de resssaca, Thackery sobe em uma carruagem, asca uma seringa e procura alguma veia ainda não arruinada por picadas. Acaba injetando uma dose de cocaína em um dos pés, debaixo de seus solenes sapatos brancos. Ele já é outro homem, aceso e resoluto, quando adentra um anfiteatro lotado para estrelar seu show peculiar: a realização da cesariana em uma mulher que enfrenta certa complicação na gravidez. O que se vê a seguir da série americana The Knick - no ar desde a última sexta-feira, dia 15, no canal Max - é o frenesi angustiante de uma operação feita com frieza metódica, mas recursos precários. Uma geringonça movida a manivela recolhe o sangue que jorra da barriga da mulher e o derrama em vidros de aparência vintage. Para bombear ar para os pulmões do recém-nascido, a enfermeira pressiona um pedal que lembra o de uma velha máquina de costura. É a 12ª vez que a equipe faz esse procedimento, sempre com o mesmo resultado: a mãe e o bebê morrem. O exaurido cirurgião-chefe - de quem Thackery é braço-direito - justifica-se para a plateia: "Espero que o trabalho ao menos tenha sido instrutivo". The Knick é uma aula fascinante sobre a medicina. Com crueza naturalista, a série produzida e dirigida por Steven Soderbergh mostra quanto a atividade evoluiu em um século. Ao mesmo tempo, revela-se que não mudou nada sob vários aspectos.

Horas depois da desastrada cesariana, o cirurgião-chefe se suicida. Novo comandante do pedaço, Thackery engata um discurso otimista no velório do colega. "Vivemos um tempo de possibilidades infinitas", diz ele. Nos cinco anos anteriores, a medicina tinha evoluído mais que nos últimos cinco séculos. Desenvolveram-se técnicas de anestesia. Os cuidados com a assepsia viraram rotina. Mas, como demonstra o tratamento dado aos tuberculosos e a um paciente com septicemia, era dura a vida sem antibióticos (que só seriam descobertos no fim dos anos 20 e difundidos a partir da II Guerra). Submeter-se então a uma cirurgia - qualquer cirurgia - era entrar em uma loteria difícil de ganhar. E perder, claro, significava ir para o caixão.

Ao ver como funcionavam as coisas nos tempos de sua bisavó, o leitor se julgará sortudo por ter nascido muitas décadas depois. Mas, embora técnicas e equipamentos tenham evoluído, cirurgias são ainda procedimentos em que há sangue, certa dose de brutalidade e considerável risco. Com o título inspirado em uma instituição real de Nova York, The Knick ilustra ainda um problema que se desenrola não nas alas cirúrgicas, mas nos setores administrativos: os hospitais de ontem. como os de hoje, já lutavam contra o fantasma do colapso financeiro, em razão dos altos custos. A série mostra, por fim, como vem de longe o problema do vício entre os médicos. Algo como um Dr. House do neolítico da medicina. Thackery é um sujeito irascível, capaz de arroubos racistas contra o cirurgião negro que vem se juntar à sua equipe. Mas é, no fundo, um homem melancólico, emparedado entre a impotência diante da morte dos pacientes e a dependência de cocaína, então usada com anestésico, e de morfina - na qual médicos se viciam até hoje. A mão que cura é a mão que se fere.



(texto publicado na revista Veja edição 2387 - ano 47 - nº 34 - 20 de agosto de 2014)




Nenhum comentário:

Postar um comentário