quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O vendaval chegou - Walcyr Carrasco



Os amigos em desespero doem. Recebo um pedido de empréstimo por dia. Todos de situações extremas

Sou um sobrevivente do Plano Collor. Na época, morava na Granja Viana, afastada de São Paulo. Tinha economizado um ano inteiro, na minha primeira novela, para passar outro escrevendo um livro. Veio o confisco. Fiquei sem dinheiro. Aluguei minha casa, construída a duras penas. Para alugar um apartamento em São Paulo, perto de tudo e ter condições para vender o carro. Telefonava para meus antigos colegas de trabalho. Ninguém sabia de vaga em lugar nenhum. Desde então, posso estar errado, passei a ter medo de bancos. O dinheiro está lá, mas, numa canetada, alguém o prende. Achava que investir em imóveis era a solução. Dilma provou que me enganei.

Paguei dois apartamentos quarto e sala durante a construção, bem no centro da mesma São Paulo. Achava que alugar seria fácil. Estão prontos desde novembro do ano passado. Ninguém alugou. Nem sequer tive uma daquelas ofertas abaixo do valor pedido que a gente acaba aceitando. Os corretores avisam: está difícil alugar. Vender também. Aproveitei o momento para trocar de carro, com minhas economias. As concessionárias estão dando vantagem sobre vantagem. Ao assinar o documento com o rapaz do cartório, ele contou:

– A gente também está com pouco trabalho. Se os negócios param, os cartórios não têm o que fazer.

Há editoras cuja meta principal era a venda de livros educacionais para o governo. Algumas reduziram o pessoal em 89%. Seja o país da educação ou não, a compra de livros em nível federal tem sido mínima. O professor de uma universidade federal, em Niterói, conta que há prédios inteiros com as luzes apagadas. Os repasses têm sido mínimos e não há como pagar a conta da eletricidade. Seu maior medo: não receber o salário em dezembro. O filho, produtor de vídeos, está sem trabalho, como grande parte dos autônomos. Amigos procuram empregos de vendedores. Não há. Até as grifes estão se segurando. Vendedoras chiques que antes desfilavam altivas pelas lojas hoje oferecem dez vezes no cartão. A grande esperança da vendedora de uma grande grife italiana:

– Quem antes viajava para o exterior comprará aqui, pois temos parcelamento.

Conheço gente, antes de classe média baixa, que perdeu o apartamento. Um amigo próximo arrumou um quartinho onde foi dormir em caixa de papelão. Outro, famoso na TV, hoje fora do ar, está ensaiando uma peça no Rio. A família mora em outro Estado. Vem para o Rio e passa quatro noites por semana dormindo no carro. De manhã toma café na padaria, se vira para tomar banho.

Entretanto, na rua, nos shoppings, dá autógrafos. (Para quem não sabe, é rara a peça de teatro que paga durante os ensaios. Só mesmo as que têm patrocínio bom. Ah, sim, está dificílimo conseguir patrocínio.) O pai de outro amigo comentou:

– Quer saber se tem crise? Olhe para o ponto de táxi. Quando está vazio, tudo vai bem.

Está cheio, claro.

Juro, nem no malfadado Plano Collor eu vi acontecer assim. Milionários que restringem despesas. Ouço por todo lado:

– Estou pensando em me mudar para fora do país.

Juro, as pessoas nem sabem o que fazer no exterior. É desespero. Há semanas tento convencer um amigo advogado próximo dos 40 a ficar. Nos Estados Unidos, como ilegal, vai trabalhar no quê? De faxineiro?

Mesmo na orla do Rio de Janeiro, um dos lugares mais caros do mundo, vejo cartazes em vidros de apartamentos: aluga-se. Havia muitos anos não via nenhum. Nos Jardins, meca da elegância paulistana, há ofertas de aluguel por todo lado. Mesmo que a situação não me afete tão diretamente, os amigos em desespero doem. Recebo cerca de um pedido de empréstimo por dia. Todos de situações extremas. Há um rapaz que não consegue terminar o mestrado. Nunca o vi. Trocamos e-mails quando estudava história no interior e, confesso, por termos amigos comuns, o ajudei durante a graduação, eventualmente. Agora não consegue continuar. Uma amiga de longos anos, saindo de um câncer, pede angustiada trabalho para a filha. Outro está com a avó doente, não tem condições de cuidar. A mãe de alguém está endividada e, para continuar a sobreviver, precisa limpar o nome. Já fui campeão de empréstimos que nunca recebi. Agora tomei consciência de que não dá para carregar o mundo nas costas.

Mesmo na minha infância modesta, com o pai ferroviário, eu nunca tinha visto tão de perto gente passando fome. Agora descubro que até amigos que eram de classe média não têm o que comer. O vendaval chegou, está afetando minha vida e a sua. Salve-se quem puder.



(texto publicado na revista Época de 31 de agosto de 2015)

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