Com o romântico Será que?, Daniel Radcliffe - que ganhou fama como o bruxo Harry Potter - avança na sua bem-sucedida transição para a carreira adulta
Em uma tarde de sol forte, crianças e adolescentes - quase 100% do sexo feminino - se aglomeraram na entrada de um shopping center no Paseo de la Reforma, avenida elegante da Cidade do México. Em pouco tempo, a horda dribla os seguranças e começa a se concentrar perto das escadas rolantes que dão acesso a um cinema. Tamanha excitação é motivada pela expectativa de que um inglês franzino de 1,65 metro em breve estará no local. Daniel Radcliffe é um velho conhecido da multidão: dos 11 aos 21 anos, o mundo o viu crescer diante das câmeras como protagonista dos filmes da série Harry Potter. Aos 25 anos, Radcliffe está dando mais um passo na sua transformação em estrela adulta. Em Será que? (What If, Irlanda/Canadá, 2013), que estreia no Brasil em 25 de setembro, ele assume o papel de galã de comédia romântica. Para as 5 000 fãs que o aguardam, porém, o bruxo dos filmes infantis e o jovem tristonho que vive uma paixão com a amiga Chantry (a loirinha Zoe Kazan) se confundem. A fusão das duas personas faz a coisa ferver. Temendo um tumulto, as autoridades ameaçaram cancelar a première. Só depois de três horas é que Radcliffe deu as caras. Todo comportado, fez questão de ler uma mensagem de agradecimento em espanhol. "Achei importante dar uma satisfação às pessoas que se esforçaram tanto para me ver", disse a VEJA na manhã seguinte. Mas o momento mágico ainda estava por acontecer: o cinema vem abaixo na cena em que o ator branquelo aparece pelado, de costas, para um banho noturno no mar.
Embora compense as doses de glacê com a delicada melancolia do par romântico, Será que? representa sem dúvida uma piscadela para a geração que brincava de boneca nos tempos de Harry Potter e agora sonha com um rapaz bonitinho para chamar de seu. Mas o novo filme não altera o rumo de sua transição profissional bem-sucedida: na carreira de Radcliffe, a ordem é diversificar. No fim da década passada, quando ainda encarnava o personagem infantil, ele embarcou em um trabalho que muitos viram como tentativa artificial de adicionar conteúdo à imagem: na peça teatral Equus, Radcliffe mostrou pela primeira vez que não tinha pudor em atuar pelado. Os projetos seguintes, no entanto, serviram como um cala-boca aos céticos. Ele fez sucesso com um musical na Broadway. Há dois anos, mandou bem como o jovem viúvo de A Mulher de Preto, filme de terror com a marca do estúdio inglês Hammer. No ano passado, interpretou o poeta beat, Allen Ginsberg (1926-1997) em Versos de um Crime. No meio-tempo, contracenou com o calejado Jon Hamm, de Mad Men, em uma série da HBO baseada na obra do escritor russo Mikhail Bulgakov (1891-1940). Em a Young Doctor's Notebook, os dois atores representam um médico de província em duas fases da vida. Hamm surge com um fantasma que comenta os fatos da vida do homem que se tornaria.
Radcliffe se revelou, enfim, um esforçado. Ele poderia ter seguido na zona de conforto dos arrasa-quarteirões juvenis de Hollywood. Mas fez um cálculo inteligente: para construir uma carreira consistente, é preciso dar a cara a bater. Nascido em uma família de classe alta de Londres, o ator leva uma vida prosaica em Nova York, onde às vezes é visto com sua namorada, a atriz Erin Darke. Simpático, falante e chamando atenção pelo tamanho ínfimo das mãos, só não gosta quando tocam em um assunto: seus problemas com o álcool durante as filmagens dos últimos episódios de Harry Potter. Quando o tema é abordado, um assessor que parecia hibernar numa cadeira dá um pulo. Mas Radcliffe o tranquiliza. "Deixa que eu respondo: essa é uma questão de quatro anos atrás sobre a qual já falei tudo o que tinha a declarar", disse ele, sem deixar de sorrir. Com essa segurança mágica, o rapaz vai longe.
"É preciso encarar riscos"
O inglês Daniel Radcliffe foi ao México semanas atrás para divulgar o filme Será Que?. Depois de levar as fãs à loucura na première da comédia romântica, ele falou a VEJA sobre sua vida pós-Harry Potter
Depois de Harry Potter, seus trabalhos incluíram um filme de terror, uma série da HBO baseada na literatura russa e, agora, uma comédia romântica. A transição de estrela infantil a ator adulto se completou?
Eu não iria tão longe. Ainda falta um bocado para chegar lá. Mas considero que as coisas estão indo bem. Não desejo, de modo algum, que as pessoas se esqueçam de mim como Harry Potter. Eu adoro o personagem e sou grato por tudo o que ele trouxe de bom para minha vida. Devo à experiência como Harry Potter a descoberta da minha paixão pela profissão de ator. Mas julgo positivo que já comece a ser visto não só como o rapaz que fez um personagem conhecido, mas também como um ator com luz própria. Com sorte, espero ter a oportunidade de continuar nesse rumo. Fazer trabalhos tão diversificados é essencial, pois as pessoas vão se acostumando a me ver com outros olhos. Quando estreei A Mulher de Preto, a reação de muita gente foi de choque. Falavam de mim como se fosse absurdo que Harry Potter tivesse se transportado para um filme de terror. Já faz alguns anos que eu fiz o último filme da série e as pessoas continuam a me confundir com o personagem. Sei que será assim por muito tempo, mas vejo essas reações com naturalidade.
Seu desempenho como ator melhorou muito desde Harry Potter. Como isso ocorreu?
Você acha que melhorei mesmo? Obrigado por ser tão generoso. Na verdade, creio que minha evolução teve tudo a ver com a idade. Quando você faz um filme muito jovem, simplesmente não tem ideia da dimensão da tarefa em que está envolvido. Nos primeiros filmes da série, eu não tinha noção do que estava fazendo ali. Depois de virar adolescente, lá pelos 14 anos, passei a ter mais consciência. Só que minha atenção estava toda voltada para as questões típicas daquela fase da vida, como a busca da identidade, os problemas com a aparência e a necessidade de estar entre os amigos. Era difícil me concentrar na interpretação. Fui me tornando um ator mais seguro à medida que fiquei mais velho. Mas também devo muito a outro fator: a experiência de fazer musicais em Londres e na Broadway. Foi no palco que aprendi a lidar melhor com meu corpo e minha voz, além de ficar mais solto.
Muitas estrelas infantis não foram capazes de sustentar a carreira depois de crescidas. Que tipo de risco é preciso evitar?
Não sei generalizar, sinceramente. No meu caso, creio que um dos fatores que me mantiveram à tona foi que tive um bom começo, como protagonista de uma série de sucesso capaz de alimentar a expectativa positiva. Mas acho que também foi fundamental não ficar parado. Ao investir no teatro e em filmes menos óbvios, creio que transmiti às pessoas a mensagem de que não estava conformado em fazer sempre a mesma coisa. Tão logo o público percebe que você quer se desafiar, você passa a ser encarado de outro jeito. Assumir riscos provoca excitação e curiosidade nas pessoas. Se você der sorte de encontrar dois ou três diretores que ponham fé em seu talento e souber agarrar essas oportunidades com as duas mãos, estará em uma ótima trilha. Evitar riscos, portanto, é uma opção equivocada. É preciso encarar riscos sem medo.
Harry Potter foi um símbolo para uma geração que tinha a sua idade nos tempos da série. Como é a experiência de crescer ao mesmo tempo que os fãs?
É uma coisa adorável. Ainda hoje, as pessoas se emocionam e dizem palavras incríveis quando me encontram. "Obrigado por ter feito parte de minha infância de forma tão especial" é o que mais ouço. Fico muito tocado quando pais dizem que ajudei a manter a família unida. Quando fiz os filmes, confesso que não tinha a mínima ideia de quanto meu trabalho estava afetando a vida de tanta gente. Eu mesmo, por ironia, não consigo assistir aos dois primeiros filmes da série hoje em dia. É embaraçoso ver como eu era ruim.
Em que momento veio a consciência do peso de interpretar Harry Potter?
Nunca foi um peso. Mas, com o tempo, fui me dando conta de que o contato com os fãs dos filmes e dos livros tinha um significado diferente para mim e para eles. Não vou me lembrar de muitas pessoas com quem cruzei ao longo daqueles anos, nem as verei nunca mais. Mas com certeza elas continuarão a se sentir íntimas de mim. Assim, percebi que não posso decepcioná-las, ser rude ou impaciente com ninguém, mesmo em um dia em que meu humor não esteja legal. Quando notei isso, captei o exato tamanho da minha responsabilidade: não tenho o direito de quebrar o encanto dos outros.
Como é lidar com a fama desde tão cedo?
A fama deve ser ignorada tanto quanto você puder. Minha passagem pelo México foi uma loucura. Havia fãs gritando no aeroporto e durante a première de meu novo filme. Nessas horas, se a sua reação for qualquer outra que não seja se esbaldar de rir ao entrar no carro para fugir da bagunça, você provavelmente não nasceu para ser famoso. Se a fama o perturba ou vira um fardo, uma hora você vai desabar. Deve pensar seriamente em trocar de profissão. Mas o contrário pode ser ainda mais perigoso: se você acha que merece a fama, por se julgar alguém iluminado ou muito especial, aí é que estará lascado de fato. Para muita gente, o sucesso se torna uma droga que causa dependência psicológica. Isso é desastroso, pois não um bem mais efêmero que a fama. Eu sou conhecido hoje por causa de meu trabalho, mas é possível que chegue o dia em que não despertarei o mínimo interesse nas ruas. Com ou sem fama, será preciso tocar a vida adiante. Se a pessoa ignora que a fama não decorre dela, mas sim de sua posição, fica complicado lidar com isso de modo saudável.
Como viver as coisas típicas dos 20 e poucos anos - como namorar e ir para a balada - sob os holofotes?
Levo uma vida relativamente normal. Tenho de me manter um pouco escondido, claro. Mas, felizmente, nunca tive de recorrer a disfarces. A verdade é que há vários lugares no mundo em que é possível levar uma vida anônima. Londres é assim. E não há cidade mais perfeita para um famoso passar despercebido do que Nova York, onde vivo. Quer dizer, talvez não seja tão simples escapar do assédio na área central da cidade. Mas, na minha vizinhança tranquila e respeitosa, isso tem sido possível até agora. Lá não é tão desafiador ser o ex-Harry Potter.
(texto publicado na revista Veja edição 2391 - ano 47 - nº 38 - 17 de setembro de 2014)
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